Há pouco menos de cinco anos, recordo-me de ter regressado à minha redação de então, a da Visão, com entusiasmo. Tinha terminado uma entrevista e sabia ter “sacado” um título politicamente controverso e mediaticamente quente a André Silva, a escassos dois meses das legislativas. O à data porta-voz do Pessoas-Animais-Natureza (PAN) pretendia inscrever no programa eleitoral “uma espécie de SNS para animais”, isto é, para cães e para gatos – fora esse o sentido da pergunta que lhe tinha colocado, baseada num esboço de programa que já era do domínio público.
Lembro-me das discussões que surgiram na altura, com as redes sociais sempre na vanguarda de uma argumentação tão pueril quanto colérica, e também não me esqueço de como André Silva procurou durante a campanha, com manifesto embaraço, dar o dito por não dito. Sem menorizar a inépcia dos seus dirigentes, o fingimento do PAN pode bem ser a causa da sua anunciada morte, mas esse é tema para outro artigo.
A entrevista, cujo teaser pode ser lido aqui, detalhava os contornos da ideia, que era isso mesmo: uma ideia irrefletida, imponderada e irrealizável no país onde o SNS – o original, destinado a seres humanos – continua em agonia profunda, com listas de espera intermináveis, equipamentos obsoletos, médicos de família em falta e profissionais em constante sobreprodução.
Entre as mentes razoáveis, é consensual que o Portugal que temos não é compaginável com um SNS para cães e gatos, mas a esses mesmos espíritos mais clarividentes também se pede que reconheçam que partiram do PAN alguns dos (poucos) avanços que foram feitos na salvaguarda do bem-estar animal. Se descontarmos o fanatismo dos que presumem que o habitat natural do Golden Retriever é um T2 na Amadora ou no Seixal ou que o Pastor Alemão se celebrizou por ser uma bela companhia em noites de Sushi at Home e Netflix, sobra um enorme vazio na liga da moderação.
Foi pela mão do PAN que os animais deixaram de ser, do ponto de vista jurídico, coisas. Foi graças a uma iniciativa do PAN que os animais selvagens não mais estiveram sujeitos aos espaços exíguos e à paranoia dos espetáculos circenses, tal como é o PAN a bater-se pela redução do IVA dos tratamentos veterinários, pela diminuição do IVA das rações ou pela abolição das touradas.
Infelizmente, o PAN, que se transfigura quando tenta parecer mais do que aquilo que é – um clube de amigos animalistas despolitizados, que viu no PS a oportunidade de ser um PEV mais airoso – , tomou a causa animal para si. Por ausência dos demais, com receio de parecerem o PAN (ou, pior, os seus ex-amigos do IRA).
À causa animal e aos acólitos de Inês Sousa Real acontece o mesmo que sucede com as migrações e com a segurança ao Chega: o medo da amálgama e da colagem. Daí que ninguém discuta com coragem a crueldade que se verifica nas arenas – nem a sonsice habitual do BE quando foi poder em Salvaterra de Magos o permitiu. Daí que ninguém pondere o impacto da morte de um animal de companhia nas condições psíquicas de um trabalhador (num país de gente cada vez mais só) e, por conseguinte, se ridicularize a ideia do “luto” e de faltas justificadas pela perda do Bóbi ou do Tareco. Daí que se reaja com indiferença aos vídeos de gatos queimados vivos em Mourão ou às vacadas na praia na Lourinhã. Daí que se considere indiferentes as condições em que o gado entra e sai da Europa. Daí que já tenha caído no esquecimento a morte de 70 animais num incêndio ocorrido num abrigo ilegal em Santo Tirso. Daí que se encolha os ombros quando se lê que existem 930 mil animais abandonados em Portugal, segundo o Censo Nacional de Animais Errantes 2023, elaborado pela Universidade de Aveiro e pelo Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas.
Não é preciso, como desejava o PAN, inscrever os direitos dos animais na Constituição. Porque sou partidário da tese kantiana de que a direitos correspondem deveres, algo que não é exigível a seres irracionais. Não pretendo, como queria o PAN, que a ração dos meus felinos esteja sujeita ao IVA do leite da minha filha. Não peço que os meus cachorros (excluo deste entendimento os cães-guia) possam viajar comigo na cabine de um avião. Nem considero necessária a instituição de um comissário europeu para o bem-estar animal nem a criação de um ministério ou de uma secretaria de Estado do bem-estar animal.
Era preciso, sim, reverter o resultado dos credos do PAN, como a proibição de abate de animais, inclusivamente quando é a saúde pública que está sob ameaça. Era necessário, sim, reforçar o quadro normativo sobre o abandono e os maus-tratos a todos os animais (não apenas os de companhia), assim como incrementar as condições dos centros de recolha oficiais, pôr em marcha verdadeiros programas de esterilização, ser implacável com as autarquias no cumprimento da legislação que regula os canis e os gatis e sair da frente das associações que asseguram que o flagelo dos animais errantes não se torna insustentável.
Dispenso o folclore do partido de Inês Sousa Real sobre a caça, as touradas na TV ou a colheita de azeitonas à noite “para proteger as aves migratórias” e muito menos condescendo com os seus tiques ditatoriais sobre a nossa alimentação e o nosso modo de vida. Mais: registei o silêncio cúmplice quando vieram a público as investigações sobre as práticas desviantes do IRA, pondo em causa o Estado de Direito. Os animais importam – importam mesmo, sem hesitações ou adversativas – e a forma como nos relacionamos com eles não pode ser secundarizada, mas meço as palavras: para mim, o PAN é uma desnecessidade moral e política. Desde que os restantes partidos se mentalizem de que o monopólio da causa animal é um autêntico seguro de vida para fundamentalistas.
Ex-jornalista e especialista em comunicação