Duas semanas depois das eleições de 5 de novembro, e os votos estão quase todos contados, Donald Trump está com metade, 50%, Kamala Harris está com menos 1,6 pontos percentuais, 48.4%. Com base no tipo de sítios onde ainda falta contar os votos, Trump deve falhar por muito pouco a maioria absoluta, mas o maior o número de votos de sempre para um candidato republicano, 77 milhões, já está assegurado. Apenas Joe Biden, com 81,3 milhões, conseguiu mais, em 2020 precisamente contra o atual vencedor.
Baseando-nos em estudos e sondagens pré e pós-eleitorais podemos dizer que três Is explicam esta reeleição intercalada quase inédita de Trump como presidente do Estados Unidos. Inflação, imigração e inversão, por esta ordem.
Inflação porque durante a presidência de Biden os preços subiram 20%, a maior subida desde a viragem dos anos 70 para os 80, com os salários médios reais dos americanos a descerem em média durante os anos Biden-Harris. Imigração porque durante estes 4 anos entraram mais de 10 milhões de imigrantes ilegais, a grande maioria através da fronteira sul com o México. E inversão, porque Biden, embora parecendo e fazendo campanha como um moderado nos costumes, tal como Harris tentou fazer, não impediu a continuada inversão de valores e normas sociais tradicionais ou até liberais, deixando o wokismo, ou ultraprogressismo cultural se quisermos, continuar a avançar, sobretudo nos primeiros anos do seu mandato. Se quisermos acrescentar mais um I, podemos dizer também insistência, insistência de Joe Biden em continuar como presidente mesmo quando a sua idade e fragilidades já tornavam mais que evidentes que era um mau candidato. Insistindo até ficar tarde demais para o Partido Democrata poder fazer uma primária competitiva que permitisse escolher e legitimar um candidato melhor. E não necessariamente a vice-presidente Harris.
Estas foram as 3 ou 4 razões por que os ventos da história não mudaram de Trump para Harris. O resultado foi uma viragem generalizada dos democratas para os republicanos em todos os estados e em quase todos os condados, dos rurais aos mais urbanos e grupos demográficos. A viragem foi particularmente expressiva em fortalezas democratas, ou outrora fortalezas, como em São Francisco, Los Angeles, Nova Iorque, Jersey City, Miami, Chicago, entre outras. O que mostra a crescente impopularidade dos governantes democratas desses sítios.
O candidato republicano Trump melhorou em um pouco mais 3 pontos percentuais em relação a 2020, ganhando mais de 2 milhões e meio de novos votos. Melhorou sobretudo entre os homens jovens, as minorias étnicas, em particular a hispânica, a mais significativa, e a asiática, segundo as sondagens à boca das urnas. Mas Trump também melhorou entre as mulheres, os católicos, e as classes médias baixas a média, perdendo apoio na classe média alta e alta. Pela primeira vez em décadas os republicanos ganharam o voto dos que têm menos de 50 mil dólares em rendimento anual, e tiveram as maiores percentagens entre hispânicos desde que há estudos pós-eleitorais, entre os negros desde 1976 e entre os asiáticos desde 1988. Trump consegue ser assim o primeiro candidato republicano a ganhar o voto popular desde 2004, a segunda eleição de George W. Bush., e a maior vitória republicana no colégio eleitoral e o maior número de estados desde 1988 com a eleição de Bush pai.
Trump tem um apelo difícil de perceber por muitas das elites liberais dos EUA. Mas é carismático de facto, com muito das críticas e ataques que recebe de outros políticos e nos média a ser contraproducente por fortalecer-lhe a imagem antissistema. A tentativa de assassinato que sofreu em julho, quando levou um tiro na orelha, produziu imagens com um forte efeito no povo americano que levaram a uma subida duradoura dos seus níveis de favorabilidade.
Apesar das particularidades dos EUA e desta eleição atípica, os Estados Unidos seguiram a tendência mundial dos últimos anos dos governos em funções perderem eleições. Em grande medida, por muitos dos Is acima referidos, sobretudo a inflação, mas também a imigração serem transversais a muitos países. Os eleitores dos vários países democráticos têm todos uma coisa em comum – insatisfação com o status quo.
Mais do que uma vitória do Trump pode argumentar-se que esta eleição foi uma derrota dos democratas, que foram percecionados pelo povo americano como maus gestores da recuperação económica pós-covid, das tensões e mudanças sociais, da fronteira e dos problemas e desafios geopolíticos, como as guerras no Médio Oriente e na Ucrânia. Uma vitória tão clara de Trump e dos republicanos, que ganharam o Senado com margem, e também a Câmara dos Representantes, teve duas vantagens: legitima o processo eleitoral, segundo uma sondagem da CNN/Ipsos 94% dos americanos acha que Trump ganhou legitimamente, muito mais do que em várias eleições presidenciais dos últimos 30 anos; e também faz os democratas consideram realmente ajustar a sua estratégia política e eleitoral, de forma a ganhar os milhões de americanos que os abandonaram, seja por que não votaram seja porque mudaram o seu voto para os republicanos, nomeadamente Trump.
Desta vez, a vitória de Trump foi tão clara que não se pode culpar fatores individuais ou acidentais da mesma forma que se pôde na vitória contra Hillary Clinton em 2016. Os democratas vão ter de repensar que tipo de políticas económicas são de facto mais popular entre os americanos, e quão esquerdista e intervencionista se deve ser economicamente. Acima de tudo terão de repensar o esquerdismo em assuntos culturais, e procurar aproveitar os exageros da futura administração Trump, assim como possíveis incompetências que esta venha a ter ao governar.
Em 2028 a eleição já não será contra Trump. Se a América não for feita grande de novo (se é que alguma vez ela deixou de ser grande), um candidato democrata carismático e razoável poderá recuperar a Casa Branca aos republicanos, tal como fizeram Barack Obama e Joe Biden. Governar bem a América ainda azul, como a maioria das grandes cidades e vários estados, também será chave para recuperar a imagem do partido democrata e fazê-lo grande de novo.
Mestrando em Estudos Internacionais no ISCTE e licenciado em História pela Nova FCSH