O recente relatório da Inspeção-Geral de Finanças (IGF) tem sido alvo de grande atenção mediática e política. Pelo valor que (não) tem, é importante considerar que o seu teor está mais próximo de uma obra de ficção, apesar de conter um fundo de verdade que merece ser escrutinado.
As práticas ilícitas e corruptas associadas às encomendas de aviões não são um fenómeno novo, nem limitado a um país ou uma construtora. A própria Airbus admitiu, em acordos judiciais, que a corrupção na aquisição de aviões, tanto civis como militares, é uma prática endémica. Em 2020, viu-se obrigada a pagar uma multa de 3 mil milhões de euros para encerrar investigações efetuadas em vários países, admitindo implicitamente que a probabilidade de a corrupção ocorrer em grandes encomendas aeronáuticas é muito elevada e é intrínseca ao próprio negócio.
Contudo, por mais que as multas sejam avultadas e que os casos se multipliquem, raramente existem culpados concretamente identificados. Pessoas julgadas e condenadas por tais práticas são quase inexistentes, o que nos leva a uma amarga conclusão: a corrupção existe, mas a cadeia de intervenientes e eventos que a sustentam nunca é suficientemente clara para resultar em condenações judiciais.
O relatório da IGF parece insinuar que algo semelhante aconteceu com a TAP, uma companhia historicamente sob alçada do Estado português. A minha conclusão é simples: todas as encomendas de aviões feitas pela TAP – e foram muitas ao longo da sua história – terão servido para “alimentar” os próprios políticos, os “donos” da TAP. Este raciocínio conduz-nos à perceção de que, em Portugal, tal como no caso da Airbus, o fenómeno da corrupção política está bem presente, mas as suas ramificações, como se sabe, dificilmente serão confirmadas por via judicial.
O relatório sugere que, desta vez, o beneficiário deste negócio não terá sido um político ou um conjunto de políticos, mas sim um investidor. Esta nova figura é, porventura, uma ameaça para um certo grupo de políticos nacionais que, no passado, terá tirado partido da TAP para benefício próprio e sem “concorrência”.
Para estas pessoas, a TAP era a “galinha dos ovos de ouro” a vários níveis e é por isso que recorrem a vários mecanismos para manter a companhia dentro da sua esfera de influência. Um dos mecanismos mais evidentes foi a recente renacionalização da TAP – solução única na Europa – sob o pretexto de que esta medida protegia os interesses estratégicos do país, da economia e dos contribuintes. Na verdade, tratou-se de uma manobra para garantir que certos interesses políticos continuam a beneficiar deste tipo de negócios obscuros associados à companhia aérea.
Outro mecanismo é o da manipulação pública de relatórios como o da IGF, atribuindo-lhes um peso jurídico que não possuem, com o objetivo de incriminar os adversários políticos. Cria-se assim uma narrativa onde se sobrevaloriza o conteúdo de um relatório que, no fundo, não possui qualquer valor vinculativo ou jurídico.
Um exemplo claro do uso indevido destes relatórios diz respeito a um documento anterior da IGF utilizado como justificação para o despedimento por justa causa da ex-CEO da TAP, decisão que será agora disputada no tribunal. Este é o verdadeiro local para se apurar responsabilidades e se fazer justiça, longe das manobras políticas e das encenações públicas que, geralmente, servem apenas interesses próprios ou partidários.
O futuro deste relatório está agora nas mãos do Ministério Público, que terá de decidir se o arquiva, se o apensa a outros processos existentes ou se avança com uma acusação autónoma. Em caso de acusação, caberá aos tribunais, em última instância, decidir quem são os culpados, se a presunção de inocência for ilidida com sucesso.
Até lá, tudo isto não passa de uma novela política que tem pouco que ver com o verdadeiro interesse público. Aliás, quem se quer apresentar hoje como defensor dos contribuintes e da transparência, poderá ser, na realidade, o que mais esqueletos esconde… nada que não tenhamos já lido num bom romance policial de Agatha Christie, quando quem acusa e denuncia é, afinal, o próprio criminoso.
Docente em Sistemas de Transporte e consultor em aviação, aeroportos e turismo