A epopeia dos Descobrimentos – termo outrora incontroverso, hoje contestado à saciedade – enformou o pensamento português dos séculos XX e XXI. A nossa “hiperidentidade”, como a cunhou Eduardo Lourenço, radica na celebração dos feitos de um povo de um país periférico que construiu à custa de sangue, suor e lágrimas um império ultramarino. Durante quase 500 anos, foi no mar (e no que havia para lá dele) que uma pátria de gente despojada, famélica e iletrada viu o céu espelhado.
Até Abril de 1974, o Portugal que ia do Minho a Díli constituía um motivo de exaltação nacional. Esses 14 mil quilómetros entre um e outro ponto do império constituíam a expressão mais eminente de um orgulho inculcado pela propaganda do regime, impingido nas escolas e abraçado no conforto pobrezinho de milhares de lares. A nação pluricontinental era um antídoto para a dolorosa melancolia coletiva, era a tradução de um sebastianismo tão reconfortante quanto artificial, era o sonho possível desde o trauma filipino que Alcácer-Quibir espoletou. Era, enfim, o fado antifado.
Com a Revolução dos Cravos, o fim da guerra no Ultramar e a concretização da independência das ex-colónias, sobraram as crónicas sobre o heroísmo lusitano, as memórias doces e amargas daqueles para quem a História foi sinónimo de fortuna ou desgraça, o revivalismo dos saudosos da velha ordem e as perspetivas obtusas que confundem o dever de memória (no sentido ético de não votarmos ao esquecimento a brutalidade do colonialismo e da escravatura) com a obrigação de compensação simbólica e/ou material pelo que os antepassados de uns fizeram aos antepassados de outros.
Se os Descobrimentos forem, de facto, tidos como o marcador da História para efeitos de reparação entre nações e povos – como se antes destes apenas tivéssemos o vácuo e quem foi opressor não tenha, noutros períodos, sido oprimido e vice-versa –, diversos estudos demonstram que algumas das antigas potências colonizadoras, como Portugal, não produzem riqueza suficiente por ano para ressarcir na totalidade os antigos países colonizados.
Cercados pela infantilidade de quem presume que o passado se corrige com devoluções materiais (como se o património histórico e cultural fosse dissociável de circunstâncias que a contemporaneidade jamais poderia controlar) ou indeminizações periódicas incalculáveis (assumindo que a escravatura, a violência e o extrativismo são mensuráveis com rigor) e vergados por uma moral que incentiva a autoflagelação do Ocidente, esquecemo-nos, pois, da complexidade das relações humanas e das relações entre Estados.
Na economia das reparações ou neste “payback time”, como o designou Shreya Gulati, tem-se adulterado o passado ao sabor de conveniências do presente, sacrificando a factualidade histórica no altar da conveniência política. Para os defensores dos pagamentos que ninguém nos exigiu, além do sempre criativo Marcelo Rebelo de Sousa, omite-se, com o despudor próprio dos profissionais do maniqueísmo, que a história do colonialismo é também uma história de miscigenação. Ignora-se olimpicamente que as migrações dentro do Portugal colonial originaram percursos complexos, não redutíveis ao binómio vencedores/vencidos.
Por trás da retórica inflamada e de tipos de pensamento que põem fim ao pensamento (os paradoxos de Chesterton são sempre certeiros) há pessoas concretas que ora foram beneficiadas, ora saíram lesadas por cinco séculos de interações humanamente imperfeitas e desumanamente irrevogáveis. Cidadãos de geografias várias que ganharam, que perderam, e até que ganharam e perderam em simultâneo devido à lotaria que é o decurso da História. Cidadãos de proveniências quase irrastreáveis, filhos da áspera e maravilhosa mestiçagem. Cidadãos que não têm por que exaltar ou abjurar o seu passado. Cidadãos que não vivem obcecados com ajustes de contas. Cidadãos que só querem seguir em frente.
Costumo resistir a trazer para o espaço público dimensões da minha vida que só a mim dizem respeito, mas não posso condescender com posições de terceiros, sejam eles presidentes de associações risíveis ou de repúblicas pouco assisadas, que me atribuem o papel de vilão ou me confinam no estatuto de vítima. Não autorizo que o façam. Ninguém decidirá em meu nome se sou um potencial reparador ou se sou elegível para a condição de reparado. Não aceito ser, como membro de uma massa homogénea ou como mero contribuinte, sujeito ativo ou passivo deste negócio de contornos indetermináveis, anacrónicos e injustos.
Os meus genes são produto de uma genealogia intrincada e inefável, onde se amam e digladiam códigos europeus, africanos e asiáticos. Neles coabitam Celorico de Basto e Huambo (antiga Nova Lisboa), Funchal e Díli, Santa Comba Dão e Tômbwa (ex-Porto Alexandre). No meu sangue, encontrarão o granulado das areias do deserto do Namibe e das praias de Ataúro, assim como a frescura da macaronésica laurissilva. Na minha cabeça, caso pudessem, ouviriam alegres solilóquios em português, tétum e umbundo. Porque sou uma combinação das circunstâncias de quem me antecedeu. Gente que, ao cruzar-se, se reparou. Gente que, ao reparar-se, corrigiu o passado. Gente que, ao corrigir o passado, alumiou o presente e construiu um futuro melhor.
Independentemente do meu cocktail biológico, não pretendo nada. Por ser bisneto de um homem a quem marxistas cubanos usurparam o produto do trabalho e do investimento de uma vida em Angola? Nada. Por ser filho de uma mulher a quem milicianos pró-MPLA apontaram metralhadoras à cabeça apenas por ter avisado uma amiga de que os confrontos com a UNITA iriam começar? Nada. Por ser sobrinho de dois homens torturados e assassinados pela FRETILIN em Timor? Nada. Por ser filho de um homem que viu cabeças de amigos em estacas plantadas em campos de futebol e que andou escapado nas montanhas para tentar resgatar os irmãos? Nada. Por descender de duas famílias que vieram para Lisboa completamente despojadas e foram forçadas a começar de novo? Nada.
Como todas as outras pessoas, sem que quisessem ou tivessem qualquer poder decisório, os meus foram chamados para a mesa deste incessante jogo de azar. Jogaram-no à luz das regras vigentes. Ganharam e perderam sem perspetivas de acertos futuros. A história de cada um, e dos Estados fora dos quais ninguém existe, não é uma conta-corrente entre passado e presente. Nem é um exercício de penitência por pecados cometidos por outrem ou tão-pouco de permanente apuramento do valor de indulgências.
De igual forma, não há máquina exatora que permita determinar onde finda o eu-potencial-reparador e começa o eu-potencial-reparado. Onde cessa a parcela de mim que colonizou e principia a que foi colonizada? Que partes de minha história e da minha equação pessoal estarão em dívida? Com que outras partes? Quanto é que devo a mim mesmo? Quanto é que cada um de nós deve, afinal, a si mesmo? De mim, previno, não esperem nada. Eu, insisto, não quero nada.
Ex-jornalista e assessor da Iniciativa Liberal