A greve é um mecanismo poderoso ao dispor dos trabalhadores, porventura o mais eminente dentro do perímetro da legalidade. Não por acaso goza de tutela constitucional e, sob tal amparo, o exercício desse direito está densificado no Código do Trabalho e na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas. Ainda assim, a convocação da greve pelos sindicatos e a realização por parte dos trabalhadores não se reveste de caráter absoluto.
Um direito não vive por si, isolado dos demais, como se fosse uma ilha. O exercício do direito à greve, além de um sintoma e de uma manifestação de liberdade, é também um fardo. É um compromisso de mim para comigo, mas, direta ou indiretamente, uma responsabilidade para com terceiros e com a comunidade. Defendê-lo sem restrições não faz de ninguém um Eugène Varlin, tal como apontar-lhe excessos não converte quem quer que seja num union buster.
Nos últimos anos, estruturas emergentes que escapam às malhas da UGT e, sobretudo, da CGTP têm conseguido ofuscar sindicatos com décadas, encostar governos às cordas e paralisar setores inteiros ou até mesmo o país, sem atender à proporcionalidade a que as diferentes formas de protesto devem estar vinculadas, sejam as reivindicações mais razoáveis ou sejam de aumentos de 15€ no subsídio de refeição — sorte a dos contribuintes que os sindicalistas da Carris não se lembraram de vales para o Solar dos Presuntos.
Não, não gosto de ver professores ameaçarem travar a progressão de alunos com greves aos exames nacionais. Não peçam para me solidarizar com paralisações de médicos ou enfermeiros nos picos de necessidade de inverno ou verão do Serviço Nacional de Saúde. Não aprecio testemunhar a libertação de arguidos à espera de interrogatório devido à greve dos oficiais de justiça. Nem me sujeitem a ter de qualificar o impedimento da realização de grandes eventos culturais e desportivos, cercos a debates políticos ou ameaças de boicotes a eleições porque grassa o descontentamento entre as forças policiais.
Por mais que haja quem queira promover a greve a um direito fundamental e irrenunciável, trazendo-o para um patamar de dignidade jurídica que, convenhamos, não tem, é hoje imperioso refletir sobre a legislação que a regula.
No Portugal de 2024, mais aberto, permeável aos efeitos da globalização e dependente das relações com o exterior, não é aceitável que mais de dez milhões de pessoas fiquem reféns das vontades e caprichos de meia dúzia de dirigentes sindicais ao serviço de partidos políticos ou, pior, com agendas pessoais obscuras. Como aconteceu com os motoristas de camiões de matérias perigosas ou como sucede com os docentes do ensino básico e secundário, com os profissionais de saúde, com os representantes dos polícias ou com os funcionários das empresas de transportes públicos.
Seja com o atual Governo ou com qualquer outro – vá-se lá saber porquê durante a vigência do acordo das esquerdas o número de pré-avisos de greve recebidos pela Direção-Geral do Emprego e das Relações do Trabalho foi mais reduzido —, a greve não pode ser uma espada de Dâmocles. Nem um objeto de chantagem que arrasta famílias e empresas alheias a lutas de classes serôdias, sem alternativas aos serviços que ficam por realizar.
O conjunto de normas que regula a greve em Portugal é demasiado datado. Não se coaduna com uma economia em que as cadeias de abastecimento são mais longas e, ainda assim, os stocks são reduzidos a mínimos, em que as exportações representam 47,4% do PIB, de acordo com dados do INE referentes a 2023, e na qual as receitas provenientes do turismo ascenderão já a 54 mil milhões de euros, segundo o relatório “Economic Impact Research 2024”, elaborado pelo World Travel & Tourism Council.
Até pela importância da dimensão reputacional, Portugal não pode sujeitar-se a ficar preso ao passado. Não se trata de mergulhar em discussões teóricas sobre o abuso do direito à greve, mas de trazer a lei que a regula para a modernidade, encontrando formas de garantir, por exemplo, o efetivo cumprimento dos serviços mínimos, à semelhança do que se verifica noutros países da Europa. Sem que os legisladores sejam apelidados de fascistas.
Aliás, assegurar o respeito pelos serviços mínimos permite que a requisição civil não seja utilizada ad hoc como ferramenta preventiva ou punitiva, muitas vezes de forma ilegal, ao sabor de conveniências governamentais.
De igual modo, é fulcral estabelecer limites às designadas práticas abstensivas atípicas, características dos sindicatos que desafiam a hegemonia da Intersindical. Através delas, o tempo material de interrupção da prestação de serviço é manifestamente superior à duração da greve decretada, o que penaliza sobremaneira os empregadores e, mais grave, os consumidores/clientes.
Em suma, trata-se somente de garantir que muitos, por norma sem capacidade reivindicativa, não ficam à mercê dos interesses de organizações muito vocais (quando não subversivas) que assumida e reiteradamente exploram a obsolescência da lei. Rever esta legislação não é cercear direitos, é calibrá-los. É equilibrá-los. É não esmagar a liberdade de uns em nome da liberdade outros. É reconhecer que um grevista não é mais nem menos que um lesado pela sua greve.
Ex-jornalista e especialista em comunicação