
Assumiu recentemente a presidência da ANEM. O que o motivou a abraçar este desafio e quais são as suas prioridades para este mandato?
Já estou ligado à ANEM desde 2022, tendo assumido diferentes cargos, desde a área da saúde sexual e reprodutiva até, mais tarde, a vertente internacional da Federação. No ano passado, fui vice-presidente para a representação externa, coordenando esta componente ao nível internacional. Estando no Núcleo de Gestão da ANEM no último ano, tive também contacto próximo com o trabalho desenvolvido a nível nacional, o que me permitiu compreender melhor o papel de presidente.
Pelo meu percurso, pelo interesse que tenho na defesa dos interesses dos estudantes e pelos temas que a ANEM procura promover, decidi candidatar-me. Constituímos a nossa lista e fomos eleitos com prioridades assentes na continuidade do trabalho desenvolvido ao longo dos últimos anos, mantendo o foco na formação médica pré-graduada e na sua interligação com a formação pós-graduada, nomeadamente o internato médico e as condições de trabalho dos internos, bem como na saúde na sua globalidade.
Sabemos que a saúde tem de ser planeada de forma diferente, uma vez que influencia diretamente a formação médica, seja através da abertura de novos cursos ou do aumento do número de estudantes por escola médica. Damos também importância à participação dos jovens nas discussões sobre saúde, tanto a nível nacional como internacional.
Em resumo, a grande prioridade é a melhoria da formação médica em todas as suas vertentes e fases.
Quais considera serem os desafios mais urgentes na formação médica em Portugal? Como podemos garantir que os estudantes tenham uma formação de qualidade e se mantenham motivados para exercer a profissão?
Acredito que, neste momento, a qualidade da formação médica pode ser influenciada, entre outros fatores, pelas condições de trabalho e pelos problemas que assistimos no Serviço Nacional de Saúde (SNS). A maioria das escolas médicas em Portugal está integrada no SNS e a falta de profissionais de saúde tem um impacto direto na formação dos estudantes. Com menos tutores, cada um acaba por ter um número maior de alunos, prejudicando a aprendizagem. Um tutor que deveria acompanhar um ou dois estudantes pode ter de orientar 15, o que compromete a qualidade do ensino e a experiência prática dos alunos. Impacta também os próprios cuidados de saúde, pois para um doente ser observado por um ou dois estudantes é completamente diferente de ser visto por 15. Ou seja, o impacto é significativo no ensino e no próprio humanismo que os cuidados de saúde exigem.
Na formação médica há uma quebra na qualidade e, recentemente, realizámos um estudo — ainda por concluir, mas já com alguns resultados preliminares — que revela que um em cada três estudantes está insatisfeito com as condições pedagógicas das escolas médicas. No ensino clínico, dois em cada cinco estudantes manifestam descontentamento.
Estudos anteriores já indicavam uma correlação entre o aumento do numerus clausus e a insatisfação dos alunos, pelo que este fator merece atenção. A sobrecarga dos profissionais no SNS afeta a formação pré-graduada e compromete o ensino clínico, podendo este ser um dos principais problemas.
Além disso, há problemas transversais ao ensino superior em geral, e não apenas à formação médica, que também têm impacto, como a falta de apoio social e as questões de saúde mental dos estudantes. No mandato passado, tentámos abordar estas questões e assinámos um compromisso com o Conselho das Escolas Médicas Portuguesas para melhorar o apoio aos estudantes. Trabalhámos também a questão da saúde mental, dado que a profissão médica e o estudo da Medicina apresentam desafios específicos, distintos de outros cursos. Assim, a perspetiva de futuro dos estudantes torna-se ainda mais complexa, considerando os problemas que vemos diariamente nas notícias.
O número de médicos recém-formados que não escolhem uma especialidade tem vindo a aumentar. Na sua opinião, o que está na raiz deste fenómeno e como podemos evitar a fuga de profissionais para o estrangeiro ou o abandono da prática clínica?
Este é um problema complexo e multifatorial que tem vindo a agravar-se. Temos acompanhado esta situação com preocupação. Ainda estamos a realizar algumas discussões e a analisar dados, mas, destacando um estudo que realizámos, há algum tempo em conjunto com a Ordem dos Médicos e a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, identificámos alguns aspetos-chave. Entre os principais fatores de insatisfação no setor público destacam-se a baixa remuneração, a sobrecarga de trabalho, a falta de progressão na carreira e as deficientes condições de trabalho.
Os médicos precisam de melhores infraestruturas e meios de diagnóstico, além de maior flexibilidade nos horários. Sem estas melhorias, é natural que procurem alternativas, seja no setor privado ou no estrangeiro. É difícil compreender este problema na totalidade, uma vez que é altamente complexo e, por isso, defendemos que o planeamento dos recursos humanos na saúde deve ser feito de forma holística. Não podemos olhar apenas para o problema das vagas no internato que não estão a ser preenchidas; temos também de analisar o que está a acontecer aos especialistas, porque, de facto, precisamos deles para formar os internos e dos médicos para formar os estudantes. São problemas interligados e, acima de tudo, acreditamos que antes de se tomarem decisões, é essencial recolher dados.
Temos defendido precisamente isto: uma recolha de dados rigorosa e um planeamento estratégico dos recursos humanos na saúde. Atualmente, já está a ser feito algum trabalho neste sentido. Existe uma entidade pública, o PlanAPP (Centro de Planeamento e Avaliação de Políticas Públicas), que tem estudado os recursos humanos na saúde e já publicou duas edições desse estudo. No entanto, ainda há muito por fazer, uma vez que, até à data, estes documentos apenas incluem dados sobre o SNS. Além disso, não basta recolher informação; é fundamental implementar as medidas recomendadas. Já temos acesso a alguns dados, mas falta aplicá-los na prática e retirar conclusões objetivas do que já foi apurado.
Muitos internos são usados para colmatar falhas no sistema, especialmente nas urgências. Como é que esta situação é vista pelos estudantes de Medicina e como pode ser mitigada?
Não nos posicionamos diretamente sobre o internato, mas colaboramos com entidades como a Ordem dos Médicos e o Conselho Nacional do Médico Interno. Embora esta não seja a nossa área de atuação principal, posso referir um estudo recente do Conselho Nacional do Médico Interno sobre o burnout nos internos, que revelou dados preocupantes para aquilo que deveria ser a realidade dos profissionais de saúde em Portugal.
É inegável que os internos representam uma parte significativa da força de trabalho no SNS, mas é importante lembrar que ainda estão em formação. Por isso, consideramos essencial repensar este modelo em conjunto com a Tutela, garantindo que os internos têm um percurso formativo adequado e que não são apenas utilizados para colmatar falhas estruturais do sistema.
A saúde mental dos estudantes de Medicina é uma preocupação crescente. Que apoios devem ser criados para garantir melhores condições psicológicas durante a formação?
Ao falarmos de saúde mental, realizámos também um estudo que revelou que 57% dos estudantes de Medicina em Portugal já experienciaram burnout em alguma fase do seu percurso académico e que 54% referiram não possuir as estratégias necessárias para lidar com essa situação.
Defendemos que as instituições de ensino superior devem dispor de gabinetes de apoio psicológico eficazes, com pelo menos um psicólogo por cada 500 estudantes.
As medidas para melhorar a saúde mental dos estudantes devem ser implementadas em parceria com o Ministério da Educação, Ciência e Inovação e com o Ministério da Saúde, garantindo também a articulação com os serviços de saúde mental do SNS.
Como avalia o impacto da crescente privatização da saúde na fixação dos médicos em Portugal? O SNS conseguirá competir com o setor privado e com as ofertas do estrangeiro?
Muitos estudantes ainda têm uma perceção positiva do SNS, sobretudo pela diversidade de casos clínicos, pelo ambiente de formação e pela ligação às instituições de ensino superior. Idealmente, gostariam de permanecer no SNS. No entanto, de acordo com o estudo que referi anteriormente, fatores como os baixos salários, a falta de recursos humanos e a sobrecarga de trabalho tornam o setor menos atrativo.
Os estudantes de Medicina começam, por isso, a considerar a emigração e o setor privado como opções viáveis. Estes problemas estão tão interligados que é necessária uma abordagem holística. Já apresentámos várias propostas nesse sentido, enviadas ao Ministério da Saúde e ao Ministério da Educação, Ciência e Inovação, para resolvermos conjuntamente estas questões.
Uma das iniciativas que queremos concretizar é precisamente perceber o que pensam e desejam os estudantes de Medicina. No Reino Unido, foi realizado um estudo sobre as intenções de carreira dos estudantes de Medicina e gostaríamos de replicá-lo em Portugal.
O objetivo não é apenas compreender quais são as intenções dos estudantes, mas também identificar os fatores que as influenciam e traçar uma caracterização sociodemográfica, que consideramos essencial para fundamentar qualquer medida futura relativa à formação pré-graduada. Afinal, estas decisões terão impacto não só no SNS, mas em todo o sistema de saúde.
Tal como disse, já endereçaram estas preocupações aos Ministérios da Saúde e da Educação. Têm obtido respostas?
Em 2024, conseguimos reunir com o Ministério da Saúde e apresentar alguns problemas. Tem havido abertura para o diálogo, mas, no que toca ao planeamento dos recursos humanos, ainda não obtivemos resposta.
Contudo, temos conseguido colmatar algumas questões mais transversais. Por exemplo, apresentámos preocupações relativas à prova nacional de acesso e à inclusão dos jovens em delegações do Governo em eventos da Organização Mundial da Saúde (OMS). A OMS tem incentivado cada vez mais os Estados-membros a fazê-lo e acreditamos que é uma medida importante.
Além disso, trabalhámos em conjunto com a Federação Nacional de Associações de Estudantes de Enfermagem para abordar temas como o estatuto do estudante de saúde e o acesso a registos clínicos pelos estudantes, que são aspetos fundamentais para a formação médica e para a qualidade do ensino.
Temos conseguido levar algumas destas questões a discussão e obter respostas. O que falta agora é a concretização. Achamos que os assuntos estão encaminhados, mas é necessário dar continuidade ao trabalho.
Podemos ter esperança de que os estudantes de hoje – os futuros médicos – continuem a acreditar no SNS e queiram apostar nele?
Sim. Mas é essencial que se respondam aos problemas e aos pedidos que têm sido feitos, não apenas pelos estudantes, mas também pelos médicos internos, especialistas e outros profissionais de saúde. Escolhemos Medicina porque queremos tratar os doentes, mas precisamos de meios para o fazer. E, por vezes, é exatamente isso que nos falta para garantir qualidade na assistência.
Acredito que há caminho a percorrer, mas os estudantes de Medicina e os profissionais de saúde estão investidos nesse processo. Agora, basta pôr os dados em prática e concretizar as medidas que estão a ser planeadas.
Sílvia Malheiro
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