
“É preciso alguma capacidade e conhecimento, mas sobretudo muita força psicológica e resiliência. Não foi fácil, nada fácil. E nem sempre fomos apoiados como devíamos ter sido.” As palavras são de Cristiano Figueiredo, médico de família na USF Baixa – ULS São José, em Lisboa, e o mentor da Prescrição Social em Portugal.
Num estágio, em 2015, no Reino Unido, entrou em contacto com a ideia e acabou por abraçar esta causa quando voltou para Portugal. Apesar do convite para ficar em terras britânicas, com melhor salário, Cristiano Figueiredo preferiu lutar por esta causa. “Percebi que havia muito a fazer no nosso país e, quando entrei na USF Baixa, em 2017, informei que o meu objetivo era avançar com esta ideia. Felizmente, foi muito bem aceite”, recorda.
Afinal, “apenas cerca de 20% dos resultados em saúde começam no acesso a cuidados e na sua prestação de qualidade; é importante perceber que a saúde começa na comunidade e quanto mais salutogénica esta for, maior bem-estar e esperança de vida se consegue”.
Transparecendo ser um homem de causas, humanista, lutou pela Prescrição Social, mesmo sabendo que não teria caminho fácil. “Quem tem de enfrentar problemas sociais acaba por ter pior saúde, vendo mesmo agudizar-se as suas doenças crónicas. Era preciso avançar.” Além disso, como acrescenta, “as histórias das pessoas que viram a sua vida melhorar, também nos movem”.
Entre essas vidas está, por exemplo, o idoso que vive isolado, porque vive num prédio antigo de Lisboa, onde não tem elevador, vendo-se incapacitado de subir e descer demasiados degraus. Mas também pode ser o outro idoso que, por causa da solidão (não desejada), precisa de integrar algum convívio para que não fique pior da depressão. Os exemplos são os mais variados, incluindo até jardinagem acompanhada (voluntariado) ao Jardim Botânico, para que os mais velhos saiam de casa e convivam mais com outras pessoas.
Sendo uma zona de imigração, onde confluem mais de 90 nacionalidades diferentes, também se aposta em projetos que ajudem os imigrantes a integrarem-se na sociedade portuguesa. Pode ser um curso de Português, workshops onde se abordam temas de saúde – num deles procurou-se desmistificar a depressão, que é tabu entre a comunidade do Bangladesh – ou promover o clube de mulheres grávidas indo-asiáticas.
Estes projetos adicionais demonstram que a prescrição social fomenta outros projetos de orientação comunitária característica da MGF, como de apoio a pessoas com diabetes durante o Ramadão. Apesar de o Islão não os obrigar a fazer jejum, há quem tenha essa “necessidade espiritual”. “É preferível, como médico, ajustar as doses dos fármacos e orientar estes utentes. Nos casos em que não é mesmo possível, é preciso sensibilizá-los.”
Além da sua motivação pessoal, o médico de família salienta que teve o apoio da restante equipa, partilhando a coordenação do projeto com a assistente social Andreia Coelho, ao longo destes anos. Mas também realça a mais-valia de as organizações da comunidade, como ONG e IPSS, terem vontade de participar. “O processo de implementação deu-nos algum prazer, porque conseguimos mobilizar as instituições da comunidade e profissionais das USF e do hospital.”
Foi dessa forma que se organizaram várias reuniões, juntando diferentes parceiros que iam conhecer os projetos um dos outros. “Criámos uma rede fantástica, que sobreviveu à pandemia. Nessa altura, este tema não era tão falado e não era uma prioridade para os decisores, mas conseguimos reunir online com centenas de pessoas de diferentes regiões do país.”
Esta persistência acabou por dar frutos e, hoje, a Prescrição Social está em mais cinco USF da ULS São José: Almirante (que começou um ano após a USF Baixa), Ribeira Nova, Mónicas, Sétima Colina e USF São João Evangelista dos Lóios. Também já se expandiu a outras unidades fora da área de influência da ULS e o objetivo é continuar a crescer. Mas, para tal, alerta: “É preciso mais recursos humanos, sobretudo mais assistentes sociais.” É necessário, ainda, mobilizar mais recursos na comunidade, maior financiamento, digitalizar processos e continuar a avaliação e a monitorização dos resultados com o apoio da Academia.”
Enfermagem: Nem todos aderem, sobretudo os idosos
A enfermeira de família Joana Onofre, da USF Mónicas da ULS São José, acrescenta que, além de mais recursos na comunidade, também é importante que se aposte na divulgação junto da população. “Este conceito é essencial para a saúde física e psicológica, mas é preciso que as pessoas adiram.”
Isso nem sempre acontece, sobretudo entre os idosos. “Como temos pouco tempo para falar e para esclarecer o que é a Prescrição Social, nem sempre é fácil que eles deixem a sua rotina. Estão muito acomodados”, confessa.
O mesmo não acontece com os imigrantes, que costumam aceitar o apoio, por quererem encontrar emprego ou ter apoio para a família. “É diferente, porque querem integrar-se na sociedade.”
Joana Onofre diz que já costumava referenciar vários casos para a assistente social, sobretudo de pessoas dependentes. Contudo, o processo é “muito mais ágil”, atualmente. “Há um circuito montado, que vai ao encontro das necessidades que costumamos sentir e, para as quais, não era fácil conseguir resposta em todas as situações.”
Todavia, admite, que seria importante haver reforço de recursos humanos, nomeadamente de assistentes sociais.
Assistente social. “Tudo é o que é novo cria resistência”
Que o diga Andreia Coelho, a assistente social que ajudou Cristiano Figueiredo a criar e a avançar com a Prescrição Social. No início, ainda restrito à USF Baixa, era a única técnica do setor social a dedicar-se, e não a tempo inteiro, ao projeto. Mesmo assim nunca pensou em desistir. “Além das mais-valias para os utentes, era também a oportunidade de dar uma outra visão do papel do Serviço Social nos cuidados primários, que ainda é muito associado apenas a subsídios.”
Os desafios foram inevitáveis ou não fosse algo inovador. “Tudo o que é novo gera resistência e, mesmo entre os profissionais de saúde e do setor social, houve quem não aceitasse desde logo a mudança.”
Como acrescenta: “Nem sempre se conseguia ver os benefícios, por se achar que este trabalho já era feito pelos assistentes sociais; além disso, na saúde, nem todos estão mais alerta e sensibilizados para as questões sociais e o impacto que podem ter no bem-estar e no estado global de saúde.”
Quanto aos utentes, o mais difícil tem sido a adesão por parte dos idosos. Na sua opinião, é uma questão cultural. “Não é habitual ir-se ao centro de saúde e ouvir que se deve ir fazer voluntariado no Jardim Botânico ou ir ao teatro.”
“Um exemplo excelente de integração intersectorial”
Para Leandro Luís, administrador hospitalar adjunto do Conselho de Administração para os CSP da ULS São José, este projeto tem uma característica fundamental. “A verdadeira integração de cuidados, na sua plenitude, implica a intervenção comunitária, intersectorial, aplicando o conceito de saúde a todas as políticas de uma forma objetiva e prática.”
O administrador considera mesmo que “é impossível ter melhores resultados em saúde, se não se trabalhar com a comunidade, e a Prescrição Social é um dos eixos que permite esta resposta adequada às necessidades da população”. De futuro, espera que o projeto se desenvolva ainda mais e que venha a ser criado um grupo de trabalho na ULS.
Rosa Valente de Matos, presidente da ULS, também considera que se trata de “um trabalho de extrema importância”, “um exemplo excelente de integração intersectorial”. “Os estudos indicam que se verifica uma melhoria efetiva do bem-estar físico e mental e, para os profissionais de saúde, [a mais-valia] é a redução da pressão sobre os serviços de saúde, com menos urgências, menos consultas e internamentos.”
Espera-se, assim, um futuro com vários desafios, apesar do trabalho já consolidado, mas isso é algo que não assusta a equipa que conhece bem a palavra resiliência. .
Maria João Garcia
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