A Amnistia Internacional (AI)denuncia abusos dos direitos humanos por parte de forças policiais, em 60 países, em nome do combate à pandemia de COVID-19. No relatório ‘Repressões COVID-19: Abusos Policiais e a Pandemia Global’, a organização documenta casos onde as autoridades responsáveis pela aplicação da lei cometeram excessos, havendo registos de pessoas mortas ou gravemente feridas por alegadamente terem violado as restrições ou por protestarem contra as condições de detenção.
No Irão, por exemplo, as forças de segurança terão utilizado fogo e gás lacrimogéneo para acabar com protestos sobre as condições de segurança nas prisões devido à COVID-19, provocando vários mortos e feridos. Nos primeiros cinco dias do recolher obrigatório no Quénia, pelo menos sete pessoas foram mortas e 16 hospitalizadas como resultado das operações policiais.
Embora algumas limitações aos direitos humanos possam ser justificadas durante uma pandemia, para proteger a saúde pública ou outra necessidade social urgente, muitos governos foram muito além das restrições razoáveis e justificadas, avança a AI. «As forças de segurança em todo o mundo estão a violar amplamente o direito internacional durante a pandemia, usando força excessiva e desnecessária para implementar confinamentos e ordens de recolher obrigatório», explica Patrick Wilcken, diretor-adjunto do Programa para Questões Globais da Amnistia Internacional.
«Embora o papel da aplicação da lei, neste momento, seja vital para proteger a saúde e a vida das pessoas, a dependência excessiva de medidas coercivas para fazer cumprir as restrições está a piorar as coisas. O profundo impacto da pandemia aumenta a necessidade de que o policiamento seja realizado com total respeito pelos direitos humanos», acrescenta o mesmo responsável.
A Amnistia alerta ainda que, longe de conter o vírus, as decisões de prender, deter, usar a força e dispersar à força as assembleias têm aumentado o risco de contágio, tanto para os responsáveis pela aplicação da lei envolvidos quanto para aqueles que são afetados pelas ações policiais.
Agressões, detenções e mortes
A investigação da Amnistia Internacional focou-se em leis, políticas e atos cometidos pelas forças policiais ou outras agências que desempenham funções de aplicação da lei. Numerosos exemplos de exagero do Estado e de abuso de poder foram falsamente justificados em nome da proteção da saúde pública, avança a organização, que aponta casos de mortes e feridos em muitos países. Regista ainda prisões em massa, deportações ilegais, despejos forçados e repressão agressiva contra protestos pacíficos. Ao mesmo tempo, avança a AI no relatório, os governos usaram a pandemia como desculpa para atacar os direitos humanos e para aumentar a repressão contra dissidentes.
Como exemplos, refere que, na África do Sul, a polícia disparou balas de borracha contra pessoas que estavam nas ruas no primeiro dia de confinamento. Na Chechénia, um vídeo mostra agentes a pontapear e agredir um homem por não usar máscara. Uma investigação da Amnistia Internacional e a organização OMUNGA também concluiu que a polícia de Angola encarregada de fazer cumprir as restrições motivadas pela COVID-19 matou pelo menos sete jovens, entre maio e julho.
A polícia prendeu e deteve pessoas por violarem medidas de quarentena e restrições de viagens, por realizarem reuniões ou participarem em protestos pacíficos, e por criticarem a forma como o seu governo estava a lidar com a pandemia. Na República Dominicana, a polícia deteve cerca de 85 mil pessoas, entre 20 de março e 30 de junho, por alegado incumprimento do recolher obrigatório. Na Turquia, 510 pessoas foram detidas para interrogatório, entre março e maio, por “partilharem posts provocativos sobre o coronavírus” nas redes sociais, em clara violação do direito à liberdade de expressão.
A discriminação também foi mais visível em muitos países. Refugiados, requerentes de asilo, trabalhadores migrantes, pessoas LGBTI e sem-abrigo estão entre os grupos marginalizados que foram particularmente afetados. Na Eslováquia, agentes das forças de segurança e militares isolaram assentamentos de comunidades ciganas em quarentena, aumentando o estigma e o preconceito que já enfrentavam. Em França, voluntários da Human Rights Observers documentaram 175 casos de despejos forçados de migrantes, requerentes de asilo e refugiados por agentes responsáveis pela aplicação da lei, em Calais, entre março e maio.
Entretanto, muitos Estados também usaram a pandemia como pretexto para introduzir leis e políticas que violam o direito internacional e revertem garantias de direitos humanos, como limitações indevidas dos direitos à liberdade de reunião pacífica e à liberdade de expressão. A AI documenta que, na Etiópia, pelo menos 16 pessoas foram mortas por agentes de forças de segurança, na zona de Wolaita, em agosto, após protestos contra a detenção de líderes e ativistas locais, supostamente por terem realizado uma reunião.
Direitos humanos no centro da resposta
Para a Amnistia Internacional, as autoridades devem tratar a pandemia de COVID-19 como uma crise de saúde pública que exige medidas apropriadas e pede aos governos em todo o mundo que garantam que as agências de aplicação da lei respeitem a sua missão final de servir e proteger a população.
«É essencial que as autoridades em todo o mundo priorizem as melhores práticas de saúde pública em vez de abordagens coercivas que foram consideradas contraproducentes. As agências de aplicação da lei devem dar ordens e instruções claras ao seu pessoal para colocar os direitos humanos no centro de todas as considerações», salienta a chefe do Programa de Polícia e Direitos Humanos da Amnistia Internacional Holanda, Anja Bienert.
A pandemia COVID-19 não isenta os responsáveis pela aplicação da lei da sua obrigação de equilibrar os interesses em jogo e de usar os seus poderes de maneira a cumprirem com as suas obrigações de direitos humanos. Nos casos em que ocorreram violações relacionadas com o policiamento e uso da força, os Estados devem conduzir investigações imediatas, completas, eficazes e independentes e garantir que todos os responsáveis sejam responsabilizados em julgamentos justos. «Os responsáveis pela aplicação da lei devem ser responsabilizados pelo exercício excessivo ou ilegal dos seus poderes. Sem responsabilidade, a porta fica aberta para novos abusos», conclui a responsável.