“Todo o tempo que alguém passa aqui é demasiado tempo”, desabafa, enquanto explica o seu trabalho e os processos de requerimento de asilo, as condições do campo de Moria e de como tudo isto acontece no meio de uma pandemia mundial e numa Europa que parece cada vez mais longe dos seus ideais.
Foi publicado no Diário do Governo um artigo que restringe a informação partilhada dentro dos campos de refugiados e tem sido apelidado de “Lei da Confidencialidade". O que é que este artigo diz e quais as suas implicações?
É uma decisão governamental, o artigo 8, e vem no contexto do regulamento dos campos de acolhimento e de refugiados.
Na teoria, é a transposição do regulamento de proteção de dados aplicada ao campo e à situação dos refugiados, mas tem levantado muitas questões. Os conceitos são indeterminados, muito vagos e podem caber muitas coisas dentro desses conceitos.
Pode querer dizer que não é permitido divulgar as informações sobre as condições dos campos. Sabemos que já havia alguns incidentes, os requerentes de asilo não podem tirar fotografias e a polícia dentro do campo controla esta questão.
O que acontece quando não são cumpridas as regras?
Já foram retiradas máquinas fotográficas, mas ainda não sabemos as consequências para as ONG. Pode ser desde a proibição de entrar no campo a uma sanção administrativa.
Como tem sido a reação de quem está no terreno a este artigo?
Na próxima semana, vai haver uma reunião entre várias ONG e este tema vai ser discutido. Ainda não se sabe bem que implicações isto pode ter e o que se poderá fazer, mas maior a parte das ONG têm ido no sentido de que este artigo é uma restrição de liberdade.
Se colocarmos no contexto português e fosse aplicado ao aeroporto, podíamos não poder informar sobre o que aconteceu com o SEF. É restringir a liberdade num contexto e não há forma depois de saber o que aconteceu.
Isto tudo é ainda mais suspeito porque saiu durante uma investigação do Observatório de Direitos Humanos (Human Rights Watch – HRW) que diz que o terreno está contaminado e que há o risco de envenenamento por chumbo.
O local onde foi construído o campo de Moria era um antigo campo de treino militar e há diversos objetos que se vão encontrando, como antigas armas.
Nestes últimos dias, está a chover muito e o campo ficou inundado. No decorrer do processo de fazer valas para que a água escorresse, foram encontradas mais armas.
Este artigo 8 é aprovado entre a HRW dizer que ia publicar este relatório e a sua publicação. São coincidências, mas neste contexto é muito complicado acreditar em coincidências.
Como estão a reagir os requerentes de asilo?
Estão muito preocupados, porque, além de estarem a viver nestas condições, ainda estão a ver mais um direito a ser-lhes retirado.
E para ti qual é o impacto?
A mim assusta-me muito, assusta-me como cidadã europeia, mas também como trabalhadora de uma ONG. Enquanto profissional, é perceber de que formas em democracia se restringe liberdades.
Era impensável pensar que isto pudesse acontecer na Grécia.
Esperava uma coisa assim da Hungria, mas da Grécia não estava à espera e afinal mostra-se que é possível.
Há muitas denúncias de requerentes de asilo e voluntários de ONG via Instagram, e sei que os jornalistas não têm permissão para entrar no campo, mas mesmo assim penso ter visto pouca discussão pública de forma mais oficial. Como achas que a imprensa local ou internacional está a reagir?
Eu ainda estou a aprender grego e não tenho muita noção do impacto aqui da imprensa local, mas das notícias internacionais parece-me que a informação é muito escassa e a discussão fica muito entre as ONG.
A discussão é importante porque se o novo Pacto da Migração e Asilo apresentado pela Comissão Europeia for aprovado, o processo que faz a identificação das pessoas considera que as que estão em campos fechados, formalmente, não estarão em território europeu. Se estas leis de impossibilidade de transmitir o que acontece dentro dos campos se mantiverem nessa altura, fica ainda mais complicado.
A Comissão apresentou a proposta a 23 de setembro e neste momento tanto o Parlamento como o Conselho Europeu estão a iniciar o processo de discussão. Houve também propostas em 2016 mas nunca chegaram a ver a luz do dia, a discussão dura até hoje. Ninguém sabe quando tempo vai demorar e se algum dia serão aceites.
Com que objetivo e quando foste para Moria?
Vim para cá pela primeira vez em fevereiro e depois saí por causa da COVID-19 — a equipa foi reduzida. Estava como voluntária e regressei em junho para terminar o trabalho que estava a fazer antes.
Em agosto, surgiu uma nova oportunidade, e desta vez regressei com contrato de trabalho, para trabalhar na mesma ONG: a Fénix Humanitarian Legal Aid.
Depois foi um círculo, não vicioso, mas talvez virtuoso. Comecei a estudar e a investigar mais. A minha tese de mestrado foi sobre esta questão dos refugiados e dos requerentes de asilo, sobre como países terceiros são considerados seguros ou não e portanto como é que as pessoas podem ser consideradas refugiadas ou não.
Como foi o impacto da chegada ao campo de refugiados?
Foi um bocadinho estranho porque eu cheguei no final de fevereiro quando começaram as questões com a Turquia [no dia 29 de fevereiro de 2020, o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, decidiu abrir as fronteiras para a entrada de refugiados na Europa como retaliação à alegada falta no compromisso que a UE fez com a Turquia para estancar o fluxo migratório em troca de ajuda financeira].
Há um número maior de chegadas novamente, com alguma violência de requerentes de asilo contra organizações, e depois as relações políticas com os vizinhos não estão muito bem, mas na altura estavam ainda piores.
Foi todo um contexto muito difícil. Depois, a COVID-19 não ajudou.
Como foram os teus primeiros dias e a tua rotina?
Nos primeiros dias, estava com algumas pessoas que já estavam a trabalhar há algum tempo no campo e outros também chegaram depois.
A habituação foi estranha porque, apesar de lermos e estudarmos, é sempre muito diferente na prática.
Nós vivemos em Mitilini, a capital da ilha, é também lá que está sediado o escritório da ONG para a qual trabalho. Moria fica perto, mas fora da cidade.
Tínhamos um escritório aqui na cidade e outro no campo, onde trabalhávamos com os clientes dependendo do que fosse necessário.
E agora, como é o teu dia a dia?
Neste momento, ainda não é possível trabalhar dentro do campo. Podemos visitar mas não temos um espaço para trabalhar, trabalhamos num sítio qualquer, mas, por questões de privacidade, é difícil.
Não dá para falar abertamente sobre algumas temáticas que podem ser mais complicadas e esforçamo-nos por trabalhar no escritório.
Neste momento, a ONG está dividida em diferentes vertentes: preparação para as entrevistas, reunificação familiar, advocacia e protecção social — ajuda com as questões médicas, de saúde mental ou de assistência.
Inicialmente, trabalhei mais com a área da reunificação familiar e neste momento estou a trabalhar na área de advocacia e portanto o meu trabalho é mais de escritório e contacto com outras organizações e preparação de documentos.
A maioria dos refugiados do campo são do Afeganistão e depois há algumas pessoas da Síria, do Congo, Somália, etc. Há uma grande diversidade de casos e de nacionalidades e mesmo do Afeganistão há diversas comunidades.
O que acontece desde que um migrante chega a Lesbos até sair legalmente para o continente europeu e quanto tempo pode demorar o processo?
Pode ser muito rápido ou muito devagar. Toda a gente que entra tem de fazer uma quarentena antes de entrar no campo geral, só depois inicia o processo de asilo.
É preciso saber se o processo tem de ser analisado aqui na Grécia ou noutros países europeus. Se se tratar de um processo com reunificação familiar, por exemplo, pode demorar até mais ou menos um ano e só depois ou a pessoa é transferida ou reinicia o processo de asilo aqui.
Pode demorar meses a anos. Eu diria que há pessoas aqui que estão há mais de dois anos à espera. É demasiado tempo. Todo o tempo que se passa aqui é sempre demasiado tempo.
O artigo 8 da confidencialidade, que foi recentemente publicado, pode ter implicações práticas no teu trabalho?
Sim, principalmente no trabalho de denúncia e de lobby há implicações diretas. Se as ONG não puderem relatar as condições de como as pessoas vivem, fica mais difícil negociar e pedir o apoio da sociedade civil, quando se desconhece esta realidade. As ONG de denúncia e lobby podem sofrer implicações muito diretas, mas há implicações para todos. As ONG médicas ou outras que usam os dados para comprar o trabalho, por exemplo, também vão estar muito condicionadas.
O campo de Moria era considerado um dos piores do mundo, devido à falta de condições básicas e pela sobrelotação, mas também pela violência, principalmente nos períodos da noite. Desta vez, está a conseguir-se assegurar melhores condições neste novo espaço?
O quotidiano, se não é pior, é igualmente mau.
À noite é sempre mais complicado e, como não há eletricidade nem iluminação, as condições são difíceis e a violência mantém-se.
E para piorar, este campo encontra-se muito mais perto do mar e inunda muito facilmente.
Com todos os problemas que existem, a COVID-19 deixa de ser uma prioridade?
Sendo totalmente sincera, sim. É um problema grave e cada vez mais os números estão a subir, mas, tanto por nós como pelos migrantes, é a última coisa em que se pensa dado todo o contexto.
Naqueles dez a 15 dias, depois dos incêndios, as pessoas estiveram a viver nas ruas, ainda mais.
As pessoas que estão infetadas com COVID-19 estão separadas, com arame farpado, e as condições também não são boas, o que contribui para piorar a situação clínica.
Há também muita população vulnerável e em situações muito complicadas. O cuidado tem de ser reforçado porque não queremos ser responsáveis pelo aumento de casos.
Agora há alguns cuidados e uso de máscara, vamos gerindo, mas é claro que há problemas mais urgentes no campo.
Quais são as maiores dificuldades para quem trabalha diariamente no campo?
Do meu ponto de vista, a minha maior dificuldade prende-se com a falta de resposta coletiva — não apenas da Grécia ou da Alemanha, que novamente se voluntariou para acolher mais refugiados —, mas uma resposta europeia e uma alteração séria das políticas europeias e ao mesmo tempo das condições do dia a dia das pessoas que vivem no campo.
Numa situação em que as condições gerais de vida são muito complicadas, as questões legais também ficam para segundo plano. Uma entrevista para pedir asilo é fundamental para a vida das pessoas, mas ao mesmo tempo é muito difícil de gerir, porque as questões do dia a dia são a curto prazo mais relevantes. Mas a médio e longo prazo, a entrevista é igualmente importante. Gerir tudo isto é complicado.
Há também um grande desencanto com as instituições e com a humanidade em geral.
Vemos o que as pessoas podem fazer de pior umas às outras a vários níveis.
E o que te vai dando motivação?
Apesar de a situação ser desesperante, as pessoas ainda conseguem sorrir ou ter gestos de generosidade ou ter esperança. É um prazer poder trabalhar com pessoas incríveis. Isto dá alento para continuar a trabalhar.
Como te começaste a interessar pela área humanitária?
Fiz o curso de Direito, e foi em algumas atividades extracurriculares que comecei a interessar-me mais sobre este tema. Tinha apenas uma ideia geral e, durante o curso, comecei a participar no grupo local da Amnistia Internacional de Coimbra e na secção cultural da Associação Académica de Coimbra. Além disso, fui fazendo outros cursos, e ao mesmo tempo que ia sabendo mais, ia-me interessando mais sobre o tema.
Quando se concretiza este interesse?
Andava à procura de emprego e surgiu a oportunidade. Para mim, foi juntar as duas coisas: o que tinha aprendido e gostava de pôr na prática e por outro lado a frustração de ver que temos capacidade de fazer mais.
Foi partir para o terreno na tentativa de mudar alguma coisa, mesmo sabendo que este apoio é uma gota no oceano.
Como geres o teu tempo livre?
Logo depois do incêndio foi impossível parar de trabalhar, mas ao fim de semana tentamos descansar. Aqui temos a possibilidade de ir facilmente ao mar, depois conversamos e descontraímos. Eu tendencialmente estou mais com as pessoas na ONG com que trabalho.
E como é a relação com a população local?
O ambiente não é fácil e há alguma hostilidade contra as organizações internacionais ou contra os requerentes de asilo. Há as pessoas que estão fartas da situação, o que é compreensível, e há outras pessoas que ideologicamente defendem a não proteção internacional. Primeiro, tentamos perceber com quem estamos a lidar e depois gerimos a situação. Pessoalmente, não tive nenhum problema mas tenho conhecimento de alguns casos mais tensos.
O que dizem a tua família e amigos do teu trabalho na frente de uma das maiores crises humanitárias de sempre?
Inicialmente, as pessoas mais próximas ficaram felizes porque sabiam que era o que eu queria e era o concretizar do trabalho que fiz até aqui.
Por outro lado, também há um misto de sentimentos, porque ficam preocupadas. Na altura em que vim, mais pelas questões da violência e dos conflitos e agora também pela pandemia.
Agora, vamos parar umas semanas, e na próxima semana regresso a Portugal para o Natal. Depois em janeiro volto e ficarei ate final de julho do próximo ano.
O que achas que cada um de nós pode fazer?
Para haver mudanças concretas, as coisas têm de passar pelas instituições, mas para que as instituições mudem, cada um de nós pode fazer alguma coisa.
Primeiro: não esquecer o tema. E ao mesmo tempo, pressionar social e politicamente, ou através de organizações, para que as coisas mudem.
Além do apoio financeiro e de outros recursos importantes, para mim, o mais importante é mesmo esta pressão da sociedade civil e das organizações para que as instituições tenham coragem para alterar alguma coisa.
Se não houver pressão, as instituições não vão mudar.