O Parlamento da Coreia do Sul aprovou na passada semana um projeto de lei que criminaliza a posse ou visualização de imagens e vídeos deepfake sexualmente explícitos, com penas que incluem prisão e multas. Recentemente, muitas vítimas têm vindo a público partilhas as suas histórias, numa altura em que o país é confrontado com um dilúvio de imagens e vídeos explícitos e não consensuais, que se tornaram cada vez mais acessíveis e fáceis de criar.

“Isto esmagou-me completamente, apesar de não ser um ataque físico direto ao meu corpo”, disse uma das vítimas à agência Associated Press.

Três anos depois de ter recebido as imagens falsas que a mostram nua, a mulher de 30 anos, que prefere manter-se no anonimato, continua a tentar ultrapassar o trauma. Falar com homens é um esforço muito grande e utilizar um telemóvel leva-a de novo para o pesadelo.

Os grupos de Telegram criados para partilhar este tipo de conteúdo levaram milhares de pessoas às ruas, na Coreia do Sul, para exigir punições mais duras. E foi na passada semana que o parlamento coreano deu um passo em frente na criminalização da posse ou visualização destas imagens.

O projeto de lei prevê até três anos de prisão ou uma multa de 30 milhões de won (cerca de 20 mil euros) para qualquer pessoa que compre, guarde ou assista a este tipo de conteúdos

Atualmente, a criação de conteúdos deepfake sexualmente explícitos, com a intenção de os distribuir, é um crime punido com 5 anos de prisão ou uma multa de pelo menos 50 milhões de won (cerca de 34 mil euros).

Se o projeto de lei for promulgado pelo Presidente Yoon Suk Yeol, a pena máxima para estes crimes aumentará para sete anos, independentemente da intenção.

Adolescentes são dos que mais criam e partilham

De acordo com a AP, a maioria das pessoas que cria e partilha este tipo de conteúdos são adolescentes do sexo masculino. Estes rapazes têm como alvo amigas, conhecidas e até familiares, na maioria menores de idade.

Estes ataques levantam muitas questões sobre os programas escolares na Coreia do Sul, mas também ameaçam agravar a já problemática divisão entre homens e mulheres no país.

O tema da pornografia deepfake ganhou atenção em agosto, depois de ser divulgada uma lista, não oficial, das escolas no país com vítimas. Raparigas e mulheres apagaram as fotografias e vídeos das suas redes sociais e milhares de jovens mulheres começaram a protestar por medidas mais fortes contra estes conteúdos.

Chung Sung-Jun

A lista de escolas não foi verificada formalmente, mas as autoridades coreanas, incluindo o próprio Presidente do país, já confirmaram um aumento de conteúdos deepfake explícitos nas redes sociais.

Este ano, 387 pessoas foram detidas por suspeitas de crimes relacionados com imagens deepfake. Deste total, cerca de 80% são adolescentes do sexo masculino.

Paralelamente, o Ministério da Educação confirmou que cerca de 800 estudantes apresentaram queixa à polícia, alegando que o seu rosto foi usado em conteúdo íntimo deepfake.

A verdadeira escala do problema é, talvez, impossível de conhecer, mas uma empresa norte-americana de cibersegurança classificou a Coreia do Sul como “o país mais visado pela pornografia deepfake”, em 2023. O relatório adianta que mais de metade das pessoas apresentadas em pornografia deepfake em todo o mundo são cantoras e atrizes sul coreanas.

Vítimas falam num sofrimento imenso

As histórias de várias vítimas foram dadas a conhecer no Parlamento sul-coreano, com os deputados a lerem cartas destas mulheres.

Uma das vítimas revela que se tentou matar para não sofrer mais com os vídeos pornográficos que fizeram com a sua cara. Outra das vítimas confessa ter desmaiado e que teve de ser levada para o hospital, quando recebeu imagens sexualmente explicitas com a sua cara e ameaçada pelos criadores do conteúdo, que lhe disseram que estava a ser seguida.

A mulher de 30 anos entrevistada pela AP suspendeu os estudos, nos Estados Unidos, e foi diagnosticada com perturbação de stress pós-traumático e ataques de pânico.

Cinco homens foram detidos por suspeitas de produzir e divulgar conteúdos explícitos falsos de cerca de 20 mulheres, incluindo dela. As vítimas são todas antigas estudantes da Universidade Nacional de Seul, uma das mais prestigiadas do país, assim como dois dos suspeitos detidos.

O conteúdo que recebeu no Telegram usava fotografias que ela publicou na aplicação de mensagens Kakao Talk, combinado com fotografias de mulheres despidas. Havia também vídeos de homens a masturbar-se e mensagens que a descreviam como uma prostituta.

A mulher confessa que, apesar da má qualidade das imagens, sentiu-se humilhada e chocada com o assédio de que foi alvo. Afirma que é muito difícil voltar a confiar nos homens, com medo de que algo do género possa voltar a acontecer, e que usar telemóveis leva-a de volta ao pesadelo que sofreu no passado.

"Hoje em dia, as pessoas passam mais tempo ao telemóvel do que a conversar cara a cara. Por isso, não podemos escapar facilmente da experiência traumática dos crimes digitais se estes acontecerem nos nossos telemóveis (...) Eu era muito sociável e gostava muito de conhecer pessoas novas, mas a minha personalidade mudou completamente desde aquele incidente.”

Não há registos oficiais da extensão do problema no país, mas o grupo ReSET diz que, numa pesquisa aleatória, encontrou mais de 4000 imagens, vídeos e outros itens explícitos.

“Tenho medo de viver como mulher na Coreia do Sul”, diz à AP Kim Hae-un , uma estudante de 17 anos que, recentemente, apagou todas as suas fotografias do Instagram. A jovem afirma que é difícil falar com amigos do sexo masculino e que tenta distanciar-se dos rapazes que não conhece bem.

“A maior parte dos crimes sexuais tem como alvo as mulheres. E quando acontecem, acho que muitas vezes ficamos indefesas.”