Não fosse a Taça de Portugal e Amarante FC e Sporting nunca haviam medido forças. Os alvinegros nunca jogaram na Primeira Liga e o Sporting nunca desceu às divisões inferiores. Por isso, ainda bem que existe a competição mais democrática do futebol português, a prova que não discrimina tamanhos, junta grandes e pequenos, e que, por isso, é rainha.
Os duelos entre amarantinos e leões são raros, como se pode imaginar. O desta sexta-feira, contudo, não é o primeiro. Em 1979/80, os dois conjuntos mediram forças na terceira eliminatória da Taça.
Pela raridade, o encontro, só por si, já seria merecedor de destaque. O interesse aumenta quando olhamos para o resultado e percebemos que o humilde Amarante FC, da II Divisão Zona Norte, travou o Sporting, futuro campeão nacional nessa época (1-1).
No jogo do desempate, já em Alvalade, o Sporting goleou, mas, por mais numerosa que fosse a derrota, nada apagaria a história feita no primeiro duelo. De forma natural, o zerozero quis saber mais sobre um dos dias mais marcantes da história do Amarante FC e, nesse sentido, falou com dois amarantinos que jogaram ambos os jogos: Antero Duarte, defesa central, e Jorge Carvalho, autor do golo que levou a eliminatória ao segundo confronto.
Um empate para a eternidade
Antes de atacar o jogo, Antero começou por recordar os tempos de Amarante FC, vividos no começo da carreira, e salientou um nome especial: «Era uma mística especial, de um clube bairrista. Era um povo pequeno e, na altura, um homem chamado Ramiro Vieira Pinto foi a marca que fez o clube crescer. Lembro-me que estivemos à beira de subir à segunda divisão. Foi por pouco. Aquele homem tirou o clube da distrital e levou-o até aos nacionais. Eram outros tempos, mais difíceis até.»
«Lembro-me que Amarante fervilhou de entusiasmo por essa altura. Por isso, a movimentação dos sócios, dos adeptos e de todos os amarantinos foi muito grande», começou por recordar o defesa, sobre as vésperas do grande dia.
«Antes do primeiro jogo, lembro-me que, em Amarante, as pessoas abordavam-nos tristes e diziam: "O Sporting é muito forte, não temos hipóteses". Sabíamos, enquanto equipa, que tínhamos bons valores e isso dava-nos alguma esperança. Pensávamos: "Bem, vamos lutar e vamos para a frente". Só assim é que seria possível algum resultado positivo. Se não arregaçássemos as mangas, aí é que não havia hipótese nenhuma», continuou a lembrar.
Em relação ao jogo, falou Jorge Carvalho, o talismã dos da casa: «Foi jogado num campo pelado, no antigo Campo da Barroca. O Sporting ficou à frente no marcador e nós depois empatámos - até fui eu que marquei, de livre. Após 45 anos, a recordação que tenho é que, no último lance, fui carregado já dentro da área. Poderia ter sido um penálti, mas, se fosse, também podia não ser concretizado. Não digo que fomos prejudicados, mas podíamos ter ido mais longe.»
Anos depois, Jorge não tem problemas em admitir que foi feliz no lance do golo: «Ainda há dias estive a conversar com o António Fidalgo, o guarda-redes do Sporting nesse jogo. Estou convencido de que a bola bate num homem da barreira. Foi um livre batido com força - batia-os sempre com muita força - e foi um desvio mesmo muito subtil, mas que mandou a bola para um lado e o Fidalgo para o outro.»
Ter 19 anos e assumir as bolas paradas - ainda por cima com qualidade- não é para todos, mas Jorge Carvalho tem as suas justificações: «Subi à primeira equipa com 17 anos. Portanto, já tinha mais ou menos dois anos no seniores. Além disso, sempre tive essa aptidão. Batia muitos livres e marcava muitos golos.»
Essa aptidão para a bola parada é também recordada por Antero, que deixou elogios ao ex-colega e aos irmãos: «O Carvalho era um jovem com muito potencial. Tinha um remate forte, colocado e com muita técnica. Ele nasceu próximo do Campo da Barroca e brincava com a bola desde miúdo. Veio de uma família de craques. Os irmãos foram jogadores de muito valor e só não foram mais além porque naquele tempo era mais difícil contratar jovens dos regionais para os grandes. Sei que eles tinham capacidade para voos mais altos.»
Nesse sentido, o defesa também teve algo a dizer sobre este saudoso duelo: «As expectativas foram mais que superadas. Toda a gente ficou encantada e maravilhada com o feito de uma equipa tão pequena. Podíamos ter sido mais um tomba-gigantes. Esse foi, até então, talvez o maior feito do Amarante FC: levar a eliminatória a um segundo jogo.»
A eliminatória não estava resolvida, mas a história já estava feita: «Quando vamos a Alvalade já vamos com o dever praticamente cumprido. Sabíamos que ia ser um jogo muito difícil e, por isso, fomos para viver e fazer a festa da Taça de Portugal», recordou Jorge Carvalho.
Para o médio, a «festa da Taça» é especial e tem a possibilidade de criar, para muitos, os «jogos de uma vida»: «A satisfação é muito grande quando as equipas pequenas têm a possibilidade de jogar contra uma equipa como aquela. É o jogo de uma vida. A população amarantina ficou muito satisfeita com aquele resultado e isso vê-se agora. Estive em Amarante há pouco tempo e houve um senhor que chegou à minha beira e disse que se recordava perfeitamente daquele jogo, como se fosse ontem. São memórias que ficam não só para nós, que jogámos, mas para os que assistiram.»
Ontem, hoje e amanhã: Amarante sempre!
Nascidos em Amarante, Jorge e Antero não deixam de viver o clube da terra, por mais que os anos passem: «Acompanho o clube à distância, porque vivo em Vila do Conde há 40 e muitos anos. Portanto, acompanho sempre que posso e, quando me chamam para qualquer coisa, nunca digo que não. É a minha equipa do coração e vivo aqui ao lado da minha outra equipa, que é o Rio Ave», referiu Jorge.
«Acompanho e agora, com transmissões em direto, quando há jogos do Amarante FC, fico preso ao ecrã a torcer», admitiu Antero.
Como a conversa só surgiu por causa do duelo da próxima sexta-feira, é impossível não abordar o tema. Os dois ex-jogadores esperam uma enchente de amarantinos em Alvalade, mas também realçam o grau de dificuldade do encontro.
«Já há uma série de autocarros para se deslocarem a Alvalade, mas vou-vos dizer: vai ser um jogo extremamente difícil. Pela época do Sporting e pelo facto de os jogadores quererem sempre mostrar mais com a mudança de treinador... Eles têm jogado um futebol fantástico e cabe ao Amarante FC retardar ao máximo o eventual golinho», aconselhou o autor do tento em 1979.
«Os amarantinos sempre foram um povo apaixonado pelo clube e tenho a certeza que se vão deslocar em grande a Alvalade. O Amarante FC, naturalmente, não tem grandes hipóteses. Se for um por cento em 100, já é muito. De qualquer modo, se o Sporting vacilar e facilitar com uma segunda equipa, sem o Gyokeres, o Hjulmand, o Inácio... Aí, talvez se consiga fazer alguma graça, mas é muito complicado», notou o defesa central.
Apesar de ambos gostarem, nenhum dos dois vai estar em Alvalade. Antero recordou o passado para explicar o motivo: «Fui operado há uma semana - coloquei uma prótese na anca - e não vou. Caso contrário, ia equacionar, sem dúvida. Ainda por cima, tenho um primo que é sportinguista ferrenho e ainda ia com ele ao estádio, mas não dá. Estou a recuperar... São estas as medalhas de antigamente, da falta de treinos com outra metodologia, dos pedalados, do esforço que se colocou na altura sem grande acompanhamento e conhecimento... Agora, as medalhas estão cá todas, mas é assim a vida.»
Cabe ao clube da Liga 3 dar um consolo na sexta-feira a estes dois heróis de outrora que, agora, vão estar agarrados à televisão a torcer pelo seu Amarante FC.