Na Europa, cerca de 88 milhões de toneladas de alimentos são desaproveitados anualmente, com um custo estimado de 143 mil milhões de euros. Em Portugal, embora não existam dados oficiais, estima-se que um milhão de toneladas de alimentos são deitados para o lixo. O problema é de tal ordem grave a nível mundial que levou à instituição, pela Organização das Nações Unidas, pela primeira vez no passado dia 29 de setembro, do Dia Internacional da Consciencialização Sobre Perdas e Desperdício Alimentar.
Em Portugal, o novo movimento ‘Unidos Contra o Desperdício’, que reúne dez organizações como membros-fundadores, surge para envolver a sociedade civil nesta luta, através da realização de várias iniciativas ao longo do ano. O movimento conta com o Alto Patrocínio do Presidente da República e o apoio institucional do secretário-geral da ONU, António Guterres.
Cerca de 1/3 da produção alimentar mundial vai para o lixo e 17% da comida é deitada fora ainda antes de chegar aos consumidores. São números muito elevados. Como a sociedade chegou a isto?
Nas sociedades de consumo, onde predomina a abundância, ou a ideia dela, os bens perdem frequentemente o seu valor intrínseco. É precisamente nestas sociedades que se regista a taxa mais elevada de desperdício alimentar, nos vários estádios, do campo ao prato. Há uma sobreprodução, excesso de oferta nas lojas e, consequentemente, sobras ao final do dia. O consumo deixa de ser responsável, procurando satisfazer necessidades que não são reais, em termos de consumo alimentar.
De que forma o desperdício alimentar afeta a sociedade e em que áreas tem mais impacto?
O desperdício alimentar é muito elevado, tendo um grande impacto quer a nível económico, social e ambiental. Se pensarmos que são destruídos recursos e trabalho porque se registou um excesso de produção ou porque são adquiridos produtos que acabam por ser destruídos, concluímos com facilidade que algo está errado; se a isto associarmos as carências alimentares e até a fome em várias regiões do planeta, podemos facilmente constatar que existe um desajuste que deve ser corrigido. Esta realidade em que vivemos está diretamente ligada ao tema da sustentabilidade e a falta dela empobrece toda a sociedade. Daí o enquadramento no conceito da economia circular.
Têm dados mais específicos sobre Portugal, nomeadamente a percentagem do que é desperdiçado no país e que tipo de produtos são mais desperdiçados?
Atualmente ainda não existem dados totalmente fidedignos para Portugal e os que temos usado são os da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO).
O Instituto Nacional de Estatística (INE) já começou a reunir dados que vão permitir ter uma noção mais clara do desperdício alimentar no nosso país. Além disso, a Estratégia Nacional de Combate ao Desperdício Alimentar prevê a recolha de informação e dados que permitam ter, em breve, conhecimento desta realidade nos vários setores. Há que salientar que existem diferenças significativas entre os excedentes, as sobras e o desperdício, sendo essencial saber identificar e distinguir com clareza cada um dos conceitos.
Acabaram de lançar a plataforma “Unidos Contra o Desperdício”. O que pretendem alcançar com este movimento?
O Movimento “Unidos Contra o Desperdício” nasce pela primeira vez, instituído pelas Nações Unidas com o “Dia Mundial de Consciencialização para as Perdas e o Desperdício Alimentar”, que se celebra deste ano em diante a 29 de setembro. Propõe-se com este movimento desenvolver um conjunto de ações ao longo do ano que, com o apoio dos seus fundadores, consciencializem a população em geral para a importância deste tema.
Este é também um movimento cívico que pretende chamar a atenção para o desperdício alimentar, procurando encontrar forma de o minorar. Esta é uma corrente agregadora de todas as entidades ligadas ao setor da alimentação e das entidades que se interessam pelo tema da luta contra o desperdício, sendo também um movimento assente na comunicação, com a componente informativa em torno da temática do desperdício alimentar.
Que ações pretendem concretamente fazer?
Serão levadas a cabo diversas ações de sensibilização assentes em campanhas de comunicação e sessões dedicadas a promover uma reflexão aprofundada sobre o tema. O objetivo é chamar a atenção, para a consciencialização e mudança de atitude ao longo de toda a cadeia, impactando todos os intervenientes: os que produzem, fabricam, transformam, embalam, transportam, consomem e os que descartam os resíduos. Desta forma poderão ser apresentadas propostas de políticas públicas que incentivem a luta contra o desperdício, seja pela doação ou pela reutilização de bens que se encontram no final do seu ciclo de vida ou que já não possam ser comercializados. Também os jovens são um público a que procuramos chegar tanto nas escolas como nas universidades, para que tomem consciência desta realidade e se deixem interpelar, alterando a situação atual.
O movimento é composto de várias entidades. Só uma ação concertada na sociedade poderá dar frutos?
Acreditamos que só uma ação concertada pode mudar atitudes e produzir resultados. É importante repensar processos e mentalidades, conferindo aos alimentos o seu valor. Por essa razão foram congregadas associações representativas da agricultura, indústria, distribuição, logística e doação. Procuramos assim traçar uma estratégia comum que em cada sector, envolvendo cada agente, gere reflexão. Também o cidadão comum tem um papel essencial nesta matéria sendo que se estima que muito do desperdício alimentar ocorre também nas famílias, o que origina o uso de recursos atualmente já escassos e ainda a produção de resíduos que podem ser facilmente evitados com uma produção e consumo responsáveis.
No caso da sociedade civil, qual o papel de cada um nesta missão?
Cada um de nós tem uma missão se aceitar comprometer-se nesta causa, que é de todos.
Mas o problema do desperdício não está só nas pessoas. O mercado, por exemplo, leva as famílias a comprarem embalagens maiores alegando poupança nesta aquisição. Que ação o mercado deve ter no combate ao desperdício?
Ao nível da indústria e da distribuição será feito um trabalho, em articulação com as autoridades que têm competência nesta matéria, que vai procurar ajustar o que é proposto ou incentivar as vendas avulso de forma a permitir que cada família compre apenas o que vai consumir.
Com o crescimento como o foco essencial das empresas, o seu apelo ao consumo é contínuo. Como se consegue conjugar crescimento económico com combate ao desperdício?
Essa é uma questão que se liga à sustentabilidade e à responsabilidade. É importante destacar o número exagerado do desperdício alimentar que existe atualmente para que seja possível contrariar as lógicas economicistas que estão hoje em desuso em sociedades mais preocupadas com o ambiente e com as pessoas com carências económicas.
O preço baixo que pagamentos atualmente por muitos produtos é uma das razões para o excesso de consumo e consequente desperdício?
O fator preço pode ter algum peso, no entanto, parece-nos que é sobretudo pelo facto de se ter deixado de encarar o alimento como um bem essencial à vida, equiparando-o a outros bens de consumo, mais banais, que fez com que as pessoas se esquecessem e passassem a desvalorizar o seu valor absoluto. Este fenómeno explica alguma da irresponsabilidade no consumo.
As superfícies comerciais têm de deitar fora o que é considerado quebra para não dar azo a desvios. Não se deveria encontrar um mecanismo em que a superfície comercial continue a ter controlo sobre as suas quebras, mas em que a comida não se desperdice?
Existem já muitos exemplos, alguns com canais bem estruturados e eficientes, para doação das sobras a instituições sociais, no final de cada dia, sobretudo de pão e produtos perecíveis, como fruta e legumes. Estas doações são objeto de benefícios fiscais. Existem, no entanto, por vezes dificuldades logísticas que provêm da legislação em vigor, que devem ser contornadas de forma a facilitar o escoamento de sobras para que não se transforme em desperdício.
De facto, o combate ao desperdício já existe com várias iniciativas a decorrer no país. O que já se conseguiu alcançar até agora?
Muito tem sido feito e existem inúmeros exemplos a que o Movimento “Unidos Contra o Desperdício” quer dar visibilidade para que as boas práticas sejam replicadas por todos. Queremos ainda encontrar forma de registar sistematicamente o que é recuperado para que os impactos possam ser medidos ao longo do próximo ano.
Que boas práticas são recomendadas à população para combater o desperdício alimentar? Tudo começa com um consumo responsável?
A boas práticas devem começar, primeiro que tudo, pelo consumo responsável, produção eficiente, uma distribuição que promova a diminuição de sobras e uma logística que incentive a facilidade no transporte entre quem produz e quem comercializa. Precisamos também de poderes públicos comprometidos em incentivar as doações e a reutilização, de autarquias atentas à redução dos resíduos orgânicos e de uma sociedade civil empenhada na redução do desperdício. É fundamental chamar a atenção, para consciencializar e mudar atitudes de forma transversal. Só unidos poderemos combater o desperdício alimentar.