Mas hoje quero escrever sobre a qualidade do ar nas cidades onde muitos vivemos. Os números são claros. Segundo dados da Quercus, por causa da fraca qualidade do ar, em Lisboa e no Porto a esperança média de vida diminui cerca de seis meses. Em Portugal a poluição do ar causa cerca de 6.000 mortes prematuras por ano, indica a Agência Portuguesa do Ambiente, e 7 a 8 milhões em todo o mundo. Isto é equivalente à morte de uma pessoa a cada 4 a 5 segundos.
A poluição provoca inflamação nas vias respiratórias, agrava problemas cardiovasculares, é responsável por dias de trabalho perdidos, contribui para elevados custos de saúde com grupos vulneráveis como crianças, asmáticos e idosos. As consequências a longo prazo preocupam ainda mais. Testes sanguíneos indicam mutações nas células, que favorecem o aparecimento de alguns tipos de cancro, como o do pulmão.
Se estes argumentos não chegam, vamos à linguagem que costuma interessar os governantes. O impacto da poluição do ar também pode ser analisado em dinheiro. Em 2060, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), 3,75 mil milhões de dias de trabalho por ano poderão ser perdidos devido aos efeitos adversos do ar poluído. O impacto directo dessa poluição no mercado poderá exceder 1% do PIB mundial, ou seja, 2,6 biliões de dólares, anualmente, segundo dados do Jornal de Negócios.
Mas, para mim, a insustentabilidade do planeta em que vivemos é sobretudo uma questão moral. Por gigantescas que sejam as perdas económicas associadas às questões ambientais, e nomeadamente à poluição do ar, não se comparam à perda prematura de vidas humanas. O sofrimento que daí decorre não tem – nem deveria ter – um preço de mercado. Diria que chegou a hora de os governos pararem de discutir os custos associados às medidas para limitar a poluição do ar e começarem a preocupar-se com os custos incomparavelmente maiores de tolerarem a dita poluição. Até porque, e como sempre acontece, com nenhuma surpresa, o problema afecta sobretudo os mais pobres, aqueles que também têm menos recursos para se livrar das doenças.
No meu ponto de vista, a questão crucial da informação divulgada pela OMS é a desigualdade no mundo. Enquanto, por um lado, altas tecnologias facilitam a vida de milhões de pessoas, noutros cantos deste mesmo mundo seres humanos como nós sofrem como se estivessem ainda na idade pré-revolução industrial.
É importante lembrar que a OMS é responsável por garantir o cumprimento do indicador Meta de Desenvolvimento Sustentável que consiste em reduzir até 2030 o número de mortes e doenças causadas pela poluição do ar. Bem como dois outros indicadores relacionados com a poluição do ar, incluindo a proporção da população com dependência primária de combustíveis.
O principal problema da má qualidade do ar que respiramos tem a ver com as concentrações de dióxido de azoto, que em Portugal são medidas nas estações de monitorização da qualidade do ar geridas pelas Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional. O dióxido de azoto é um excelente indicador da poluição associada à actividade humana, nomeadamente ao tráfego automóvel.
Pois é, o problema está no excesso e no tipo de automóveis que todos os dias circulam nas cidades. A solução é óbvia: é preciso andar menos de carro e escolher carros menos poluentes. E o esforço tem de ser colectivo. O exemplo deve começar nas empresas. Muitas oferecem carro, gasolina e estacionamento, mas não pagam o passe social aos colaboradores. Agora que a pandemia testou o modelo, é preciso manter a aposta no trabalho a partir de casa. Andar a pé e de bicicleta é uma opção cada vez mais viável nas cidades que se reestruturam a pensar nas pessoas, não apenas nos automóveis. Os transportes públicos são outra alternativa, e por isso é preciso apostar neles como estratégia para o país. Li no outro dia uma reportagem impressionante sobre a cidade brasileira de São Paulo, em que uma única linha de metro economiza 3 milhões de barris de petróleo por ano.
Aproveitemos a pandemia para implementar outros modelos de mobilidade urbana, de trabalho e de investimento em negócios mais sustentáveis. Fiquei atónita com uma pesquisa da Universidade de Stanford, nos EUA, que verificou a diminuição drástica da poluição em quatro das maiores cidades da China (Pequim, Xangai, Guangzhou e Chengdu) no período em que a grande maioria da população activa do país trabalhava a partir de casa, a actividade industrial desacelerava radicalmente e os gastos energéticos em geral foram minimizados. O estudo, conduzido pelo professor Marshall Burke, estima que 77 mil vidas foram salvas por conta da drástica redução da poluição atmosférica.
Impossível não fazer o seguinte raciocínio: as vidas poupadas devido à redução da poluição são aproximadamente vinte vezes o número de vidas perdidas directamente pela COVID-19. E isto obriga-nos a pensar no óbvio: uma interrupção desta magnitude, com grandes benefícios associados para a sustentabilidade ambiental, sugere que precisamos de fazer muita coisa de forma diferente. Precisamos de uma disrupção. E talvez assim seja possível viver nas grandes cidades sem esta sensação permanente de esgotamento.