Comecemos pelo princípio. Luís Montenegro teve esta terça-feira o pior dia desde que vestiu o fato de primeiro-ministro. Sem meias-palavras: conseguiu tornar desastroso um plano de apoio aos media que, já de si, estava longe de ser palatável para quem quer que fosse (exceção feita aos patrões da Impresa e da Media Capital). Pôs-se a elaborar acerca de jornalistas “ofegantes” e dos auriculares que estes usam para que lhes soprem perguntas e defendeu uma comunicação social mais “tranquila”, já que nem tudo é “de vida ou de morte” e, afinal, o país até vai funcionando.
Ou seja, o chefe do governo lançou um plano para tentar comprar a simpatia de uma classe ruidosa e influente e, sendo benévolo, graças a níveis de inépcia que ainda não tínhamos testemunhado, virou-a toda contra si. Não satisfeito com a generalização que fizera e com o opróbrio que muitos já condenavam, concedeu uma entrevista a alguém, Maria João Avillez (MJA), que, aparentemente, não possui carteira de jornalista há quase duas décadas e que assumiu votar “quase sempre” no PSD.
Interessa-me pouco o passeio que o primeiro-ministro teve em prime-time. O próprio saberá por que razão escolheu aquele formato e não objetou a escolha da entrevistadora, cuja carreira merecia muito mais respeito do que aquele que lhe está a ser dedicado pelas turbas do costume. Da mesma maneira, presumo que MJA, com currículo e experiência de sobra, estivesse ciente dos riscos inerentes à condução daquela conversa a dois dias da entrega da proposta do Orçamento do Estado para 2025.
Ainda assim, perdoem-me os justiceiros, mas estão a canalizar a fúria corporativista para o alvo errado. Se abandonarmos a candura da tese de que os políticos têm grandes obrigações morais com os media, que não estão num afã constante pelo controlo do espaço público e numa permanente caça ao voto, percebemos que a responsabilidade do episódio, mais do que a Montenegro ou a MJA, deve ser imputada à direção de informação da SIC.
Não, não embarco no linchamento a MJA. Muito menos com base no argumento burocrático e doentio de que a profissão que sempre exerceu lhe está vedada porque não tem um cartãozinho (caríssimo, por sinal) emitido por uma entidade anacrónica e historicamente gerida por clubes de amigos. Por caricato que pareça, para estes servos das formalidades, Ruben Amorim não poderia ter sido treinador do SC Braga e depois do Sporting até ter concluído o nível IV dos cursos de treinador da UEFA. Para dar apenas um exemplo bizarro…
Tive o privilégio de passar por diversas redações e em todas me cruzei com enormes profissionais com diferendos com a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ). Mais: trabalhei com gente que, por um motivo ou por outro, tinha o seu título profissional expirado há tempos imemoriais. Tiveram alguma chatice devido a essa circunstância? Não. Punham em causa a sua integridade laboral? Nem por um segundo. Eram menos jornalistas por isso? Não me parece.
O que me parece é que o problema radica, sobretudo, nas simpatias políticas de MJA. Os mesmos espíritos que se sobressaltaram com a entrevista da senhora ao primeiro-ministro não dispensaram um segundo a lamentar a entrevista feita pelo antecessor de Montenegro ao Presidente da República em funções ou ao governador do Banco de Portugal, que, não esqueçamos, tinha sido seu ministro das Finanças e que, não finjamos, pretende ser candidato presidencial. Ou vão tentar convencer-me de que António Costa terá pedido a carteira de estagiário para o seu programa semanal no Now?
O jornalismo de investigação que hoje reduz MJA a marioneta de Montenegro reagiu com a habitual reverência aos planos obscuros de José Sócrates para escolher direções de publicações históricas ou para manietar Manuela Moura Guedes e a TVI através da compra pela PT.
O jornalismo imaculado, feito por puros que se erguem sempre que confrontados com injustiças, foi aquele que não se eriçou quando outros, da esquerda à direita, sonegaram informação, pressionaram, ofenderam, ameaçaram ou coagiram colegas.
O implacável jornalismo independente jamais condescendeu com as pitonisas de um sem-número de atores do nosso espaço público nem, evidentemente, com os intérpretes autorizados das narrativas da situação. E ainda menos, claro está, com os pregadores da isenção que mostram a verdadeira face nas respetivas redes sociais.
O jornalismo sem interesses e onde as portas não giram é aquele em que ninguém salta para os negócios, para as agências de comunicação ou para as assessorias políticas (guilty as charged), económicas ou desportivas. É tão virtuoso esse jornalismo, e tão intransponíveis tais portas, que todo e qualquer jornalista fica impedido de algum dia regressar às redações, como se tem verificado.
Nesse vale encantado, não há ativistas político-partidários que se afirmam jornalistas sem que os Woodwards de turno denunciem a patranha. Nessa realidade etérea, não existem jornalistas mais ocupados a assinar livros, cartas abertas e manifestos ao lado de políticos do que a produzir notícias ou reportagens.
Nesse espaço povoado somente por gente proba e arautos da liberdade, não se salta da presidência do sindicato que representa a classe para a bancada parlamentar do partido que julga representar toda a classe trabalhadora. Nessa exosfera ética, não há promoção de figuras que ninguém entende muito bem de onde brotam nem o aproveitamento de espaços de comentário para acertos de contas pessoais ou lançamento de campanhas de diversas naturezas.
Os media, que amo profundamente e que defendo em todo o lado para lá dos limites da razoabilidade, são fundamentais em qualquer democracia digna desse nome. São incontornáveis para pôr os poderes em sentido – não servem para os elevar em andores nem para os sacrificar em altares. Deixem lá MJA. Tal como um cartão de militante não faz de ninguém menos livre, uma carteira profissional não torna quem quer que seja mais imparcial. Se há reflexão a fazer, é sobre e com quem tem permitido o estado a que o jornalismo chegou. Quero acreditar que esses terão carteira profissional.
P.S.: Ao plano do governo para salvar a comunicação social, que continua incapaz de um exercício de autocrítica e de uma reflexão madura sobre a sustentabilidade do setor, voltarei em breve. Deixo, contudo, um alerta: as aproximações do poder político ao poder mediático começam quase sempre com boas intenções; a resposta do poder mediático ao poder político começa quase sempre com pequenas concessões. Regra geral, estas danças nupciais acabam mal.
Ex-jornalista e especialista em comunicação