Ainda sou do tempo em que dirigentes partidários (relevantes ou não, pouco importa), políticos aposentados (com currículo ou desbiografados, não interessa), comentadores-tudólogos (ainda que ninguém lhes conheça uma ideia) e jornalistas-ativistas (com a superioridade moral dos ungidos) tinham numa pedra gravada a lei de que há no espaço público figuras intoleráveis e, por maioria de razão, espaços políticos insalubres.
Ai de quem reconhecesse uma qualidade a André Ventura ou realçasse uma posição razoável ao seu partido. Trovejava a um nível de que nem Santa Bárbara nos protegeria se os temas-fetiche do Chega fizessem parte do argumentário de quem quer que fosse (até se abordados com sensatez). Era o que faltava que os democratas admitissem entendimentos, explícitos ou tácitos, de governação, incidência parlamentar ou para jogar à malha, com o pai de todos os males do nosso regime. A mera coincidência num evento público significava conivência com o recrudescimento das sombras do Estado Novo.
Nem à mesa de café um português de bem poderia sentar-se com um político daquele jaez. Afinal, respirar o mesmo ar que Ventura significava cumplicidade com a ameaça do fascismo. Não foi assim há tanto tempo. Vivíamos no apogeu do linhavermelhismo, a doutrina que, à falta de definição mais apurada, se caracteriza pela permanente sinalização de virtude, idealmente em coro, em busca de aplausos (reais ou imaginados) de um punhado de telespectadores ou seguidores do Twitter.
Face ao “não é não” de Luís Montenegro, que agradeço penhoradamente enquanto membro de um campo ideológico que defende com ardor a democracia e as liberdades, o respeito intransigente pelos direitos humanos e a preservação sem concessões das instituições que asseguram o primado do Estado de Direito, os linhavermelhistas ficaram a pregar aos peixes. E de discurso mais vazio do que o olhar.
Talvez por causa dos efeitos do sol, os linhavermelhistas domésticos esqueceram-se de que as linhas vermelhas devem ser aplicadas aos dois hemisférios da nossa política — sem distinguir se as ameaças à democracia têm dez ou cem anos, se a paixão por tiranos é uma relação histórica ou um affair de verão e sem relativizar regimes torcionários em função de alinhamentos ideológicos.
A invasão da Ucrânia por parte da Rússia recordou-nos novamente — exceto aos linhavermelhistas, evidentemente — da natureza do Partido Comunista Português (PCP), que, por ódio aos EUA, à União Europeia e ao capitalismo, mais depressa condena quem apoia uma nação e um povo estropiados, que batalham pela soberania e pela liberdade, do que a força agressora.
O PCP, tratado com a bonomia do costume por alguma imprensa de punho erguido, e por criaturas rasas que saltam das redes sociais e das afinidades do Lux para as páginas dos jornais ou para programas de parca audiência financiados por todos nós, não mudou nem mudará. O rescaldo das “eleições” venezuelanas foi só mais um lembrete.
Só mentes totalitárias ou predispostas a aceitar autocracias de sinal contrário às dos amigos de Ventura acreditam que é aceitável estar ao lado de quem ameaça a sua própria população com banhos de sangue se perder eleições, como fez Nicolás Maduro. Só quem não leva o primado da lei a sério aceita que um líder político use as forças armadas e as polícias como a sua tropa de choque e impeça alguns observadores internacionais de entrarem no seu território. Só quem não gosta assim tanto da democracia condescende com um caudilho que forja resultados de atos eleitorais – se é que o aconteceu na Venezuela é digno desse nome. Só quem vive em paz com a tirania relativiza a detenção de opositores políticos (à hora a que terminei este artigo Edmundo González e María Corina Machado, felizmente, não tinham sido capturados).
Só se deixa “surpreender” quem quiser. O PCP esteve sempre alinhado com déspotas, desde que esses déspotas estivessem desalinhados dos EUA – e os que dizem o óbvio são reduzidos à condição de “ufanas máquinas de propaganda política”, como escreveu Pedro Tadeu, ex-diretor de jornais e comentador da CNN, no Diário de Notícias, para rematar a tese de que Maduro não é comunista porque nem o Partido Comunista da Venezuela o apoiou.
Presumo que Pedro Tadeu saiba o caminho para a Soeiro Pereira Gomes ou que consiga escrever “Quinta da Atalaia” no GPS e que, lá chegado, seja suficientemente comunista para dizer aos camaradas que dispensaria os encómios daquela notinha produzida pelo partido, porque, afinal, o que Maduro y sus muchachos fazem na Venezuela e com o seu povo não é bem comunismo.
Pois bem, em Caracas ou Havana, em Manágua ou Tegucigalpa, em Moscovo ou Pequim, em Teerão, Pyongyang ou Lisboa, não existem totalitarismos virtuosos. Não é possível ser linhavermelhista às segundas, quartas e sextas e advogar frentes de esquerda que incluam o PCP às terças, quintas e sábados, como faz aquele partido unipessoal que de livre só tem o nome.
Tão-pouco entendo como se é linhavermelhista durante toda a semana para, em domingos de presidenciais, apoiar e votar no candidato apresentado pelo PCP. Fizeram-no, em 2021, Ascenso Simões, alegando que João Ferreira tinha uma visão da função presidencial muito semelhante à sua, e Isabel Moreira, que vislumbrava no comunista o candidato mais indicado para travar o populismo.
Desenhar linhas vermelhas, além de um problema cromático, é uma questão de consistência doutrinária e de coerência estratégica. Não a espero de quem encolheu os ombros quando António Costa importou o PCP para o arco da governação, mas também não esperem que finja que não vejo o que estou a ver. Das duas, uma: ou somos democratas ou dormimos, sem rebuço, com quem não o é.
Para uns, o linhavermelhismo, à esquerda e à direita, é uma saudável convicção férrea. Para outros, o linhavermelhismo, não passa de um conceito vazio e oportunista. Aos segundos, basta que os seus se perpetuem no poder. As linhas, essas, podem ser vermelhas, amarelas, azuis, verdes, laranja, rosa ou de qualquer outra tonalidade. Tanto lhes fez. Tanto lhes faz.
Ex-jornalista e especialista em comunicação