À falta de uma guerra na Europa, outra no Médio Oriente, da Convenção do Partido Democrata nos EUA, das urgências hospitalares no costumeiro caos e de um assombroso incêndio na Madeira, houve esta semana uma pequena parte do país – eu sei que o X (ex-Twitter) não é uma amostra significativa – que se entreteve a debater “pessoas que menstruam” e... bolas de berlim.
No manicómio a que só pelo sentimento de pertença e pelo carinho que daí decorre teimamos chamar Portugal, foram destruídos ratos e teclados porque existem pessoas a fazer pela vida e a tentar ganhar uns trocos com o doce que uma família de judeus refugiados trouxe para Portugal aquando da II Guerra Mundial.
Porventura por falta de ocupações mais prementes, o Polígrafo decidiu verificar a adesão à realidade de uma publicação “viral” – o termo arrepia tanto quem sofre como quem não sofre de ansiedade – sobre a “roubalheira” das tais bolas, que só perdem em notoriedade e paixão para as que começaram a rolar neste querido mês de agosto nos principais estádios do país.
Chegou a ser enternecedor testemunhar o zelo com que alguns esmerados embaixadores do sistema capitalista tentaram explicar aos partidários do socialismo de miséria que fixar os preços das bolas de berlim (ou de qualquer outro bem) teria um só efeito: escassez e o seu consequente desaparecimento dos areais. Nada que um dos simpáticos vendedores da Meia Praia não tenha compreendido e transformado em pregão de há vários anos a esta parte. “Olha a bolinha de berlim! / Se não comprarem, ficam todas para mim.”
Sem eufemismos, é esta a lição de economia de mercado para totós e para os autoproclamados porta-vozes da classe trabalhadora (condições, por regra, coincidentes): aquele homem de pele ressequida, pés calejados e ombros massacrados pelo peso das arcas com o seu ganha-pão chega ao ponto de venda e define o preço que lhe parecer razoável, em função dos custos de produção e distribuição e das horas de esforço a calcorrear a praia de chapéu em chapéu, toalha em toalha. Se não despachar o stock, no dia/semana/mês seguinte, tendo dois dedos de testa, ajusta o preço, seja este de 0,80€, 2€, 8€, 20€, 80€ ou 200€, e conseguirá mais clientes.
Tal como acontece à beira-mar, o mercado é cruel e infalível no mundo das outras bolas. Se uns se detiveram sobre os valores dos doces “importados” de Berlim, outros desgastaram-se com as amarguras que se vivem no Porto. Durante semanas, algumas viúvas de Pinto da Costa, do oportunista João Rafael Koehler, do videirinho Vítor Baía e mais uns quantos atolambados julgaram ser possível continuar a habitar na utopia de que o clube está com um nível de saúde financeira similar ao dos rivais. Não está.
Quem nunca foi exigente em tempos em que escorria leite com mel pelas paredes do Dragão veio, súbita e despudoradamente, reivindicar fartura em tempos de fome. Queriam Faye, Danilo, ou Nehuén Pérez para o eixo da defesa, Ezequiel Fernández para o miolo, Wesley ou Asprilla para as alas e Depay ou Vítor Roque para a frente de ataque.
Revoltaram-se igualmente – como nunca se viu perante a vasta lista de contratações falhadas (algumas inexplicáveis) e face ao corrupio de saídas a custo zero – porque Evanílson foi vendido por um valor superior aos de... Taremi, Aboubakar, Marega, Tiquinho Soares, Zé Luís, Waris, Gonçalo Paciência, Fernando Andrade e Adrian López. Todos somados.
Talvez por isso, e porque algumas das almas sobressaltadas não compreendam o ponto a que se chegou, André Villas-Boas tenha tido de fazer o que qualquer líder e gestor responsável faria. Recordou, sem rodeios, que o clube tem um passivo gigantesco (513 milhões de euros no final de 2023) e que os passos não podem ser maiores do que as pernas. Até porque os capitais próprios devem estar ainda pouco acima do vermelho.
A recusa da infantilização dos sócios (e, noutros campos, dos eleitores) não será a forma mais popular de administrar uma crise, concedo, mas é a única maneira de sair dela sem a mão estendida, com a cabeça levantada e a consciência tranquila.
Villas-Boas pode ter dado um murro no ego dos portistas, habituados que estavam (estávamos) a “desviar” jogadores da 2.ª Circular com a facilidade com que se tiram doces a crianças. É a vida, e agradeço-lhe a franqueza que os delírios estivais costumam travar. Não temos dinheiro para bolas de berlim, aprendamos a comer o pão que o diabo amassou.